Acerca do Passado
04:27A adolescência é uma viagem na maionese.
(Esqueci-me de como se escreve tal estrangeirismo.)
Fiz o meu primeiro (e até agora, único) piercing aos dezasseis anos. Não foi difícil convencer a minha mãe. Disse-lhe que era apenas um apetrecho agregado à minha narina direita - e que forma tão bonita de pôr as coisas. Não passaria de um brilhito metálico no meu nariz e só custaria €2,50 na Vasco Moura da Costa de Caparica. Foi tão simples quanto fazer uma pinta com uma caneta grossa no local onde queria e logo a senhora espetou com uma agulha pela minha pele, disfarçada sob o efeito de uma pistola (ou nem eu me tinha aproximado da coisa). Cheguei a casa e a minha mãe olhou-me de alto a baixo. Depois, parou o o olhar sobre aquele novo brilho metálico. Abanou a cabeça em desaprovação e perguntou-me: "Quem é que, lá na escola, também fez um piercing no nariz?"
Mas eu fui a primeira.
Pintei o meu cabelo pela primeira vez aos quinze anos. Aos catorze, já tinha decidido que queria mudar radicalmente o meu vizual e fiz uma permanente. A minha mãe chamou-me louca, fez de tudo para me impedir de cair na tentação de me tornar uma viciada em cabeleireiros. Mas eu não desisti. Quando fiz quinze anos, já tinha as ondas velhas e gastas, e com o passar do tempo, o meu cabelo alizou. Pintei de vermelho, apenas duas faixas à frente, em contraste com o meu velho loiro, com um frasco de tinta de supermercado que uma amiga me deu depois de usar apenas um pouco. Não gastei o frasco todo, apenas despejei um pouco do conteúdo sobre as amostras de cabelo para experimentar madeixas, e pela primeira vez senti o cheiro a tinta. Depois, embrulhei a ponta do frasco em papel hegiénico e prendi com fita-cola. Assim guardei o meu primeiro frasco de tinta pra o cabelo, selado com papel hegiénico na prateleira sobre o lavatório da nossa antiga casa de banho. Ali ficou durante algum tempo, à medida que eu achava que as minhas madeixas vermelhas se desvaneciam e eu precisava de as retocar, até que a tinta secou, e o frasco foi para o lixo.
Mais tarde, quando tinha acabado de fazer dezassete anos - e depois de já ter passado por outras diversas experiências com outros frascos de tinta para o cabelo de cores diferentes - achei que estava na hora de mudar radicalmente uma vez mais. Upgrade. Desta vez, achei que devia ir ao cabeleireiro.
A minha mãe não queria, claro. Era muito nova, e pintar o cabelo de qual quer que fosse a cor no cabeleireiro, com tintas de amoníaco, fosse o que fosse, era muito feio e perigoso. Ainda assim, não ouvi. Disse-lhe que ia pôr qualquer coisa discreta - entre as minhas amigas, estudei bem as opções - um vermelho? Um violino, talvez?
Quando a cabeleireira retirou a toalha da minha cabeça, os meus cabelos molhados pingavam de cor-de-rosa choque. Em choque estava eu. Em choque ficou a minha mãe. A minha amiga passou pelo cabeleireiro, bateu à porta, a dona São abriu o trinco da porta - eu era a única cliente, um favor que ela me fazia ao final da tarde de dia de semana. A minha amiga entrou e viu os meus cabelos cor-de-rosa choque. "A tua mãe vai se passar", disse ela. A minha mãe passou-se. Caminhávamos rua acima, eu ainda sentia o cheiro vivo dos químicos da tinta a queimarem-me o meu cabelo novo. Cor-de-rosa choque e preto. O choque tinha me passado: adorava o meu novo visual, sentia-me única, e mal podia esperar por chegar à escola e mostrá-lo a toda a gente. Um Citröen Saxo azul passou por nós. De lá de dentro, uma cabeça morena espreitou. A minha mãe perdeu o sorriso. "É essa a tua cor discreta?" perguntou ela. "Quero ver agora como é que essa porcaria sai da tua cabeça". Numa fracção de segundo, senti-me magoada. Mas nada me podia tirar o orgulho de ter um cabelo cor-de-rosa choque numa cidade como aquelas.
Na escola, as pessoas rodeavam-me. A minha outra amiga, acercou-me e percorreu-me os dedos pelos cabelos. "O teu cabelo está lindo!" dizia-me. Sentia-me orgulhosa de mim, do meu novo visual. As raparigas mais novas - eu era finalista, naquele ano - olhavam para mim com admiração. Os rapazes passaram a notar a minha presença. Mais tarde o meu esterótipo criou-se. "Vai ali a Ana", diziam. "Qual Ana? Ah, a do cabelo." "Estou aqui com a Ana", diziam ao telefone, "Que Ana?", perguntavam, "A do cabelo cor-de-rosa choque." Mais tarde, o meu esterótipo criou-se. Eu era a Ana do Cabelo, sempre que eu percorria a Praça São João Baptista, todos me identificavam, todos me cumprimentavam. Lentamente, começaram a aparecer em todo o lado miúdas mais novas de cabelos em tons diferentes de cor-de-rosa, e eu seguia de queixo erguido e orgulhosa.
Em casa, a minha mãe perguntou-me: "Quem, lá na escola, é que pintou o cabelo dessa cor, para tu fazeres o mesmo?" E eu respondia: "Ninguém, mãe. Eu fui a primeira."
Apaixonei-me pela primeira vez aos dezasseis anos. Até lá, era uma miudinha desajeitada, que até à terna idade dos catorze anos, mal se sabia cuidar. Apaixonei-me por um dos rapazes da banda. A banda da escola, não da escola, mas o grupo de rapazes da escola que tinha uma banda. Sentavam-se todas as tardes debaixo do pinheiro sobre um banco de madeira assinado com as suas frases. Ele era aquele de cabelo curto encaracolado que se espreguiçava com as mãos entreaçadas uma na outra e lançando os braços para cima. Era o guitarrista. A banda nem era nada de especial. duvido que alguma vez tenha ouvido, sequer, algum original da banda - ah, mentira. Ouvi um concerto que, certo dia, deram na escola. De especial, nada tinham. Lembro-me que comecei a gostar daquele rapaz quando a minha amiga, a minha velha e antiga melhor amiga, me falava de um tal rapaz guitarrista daquela banda, lá na escola. Já não me lembro porquê - esqueci-me, mas não tem grande importância - mas ela não gostava dele. Chamava-lhe nomes quando estava comigo. Dizia que ele era estúpido, parvo. Um dia, perguntei-lhe quem era. Ela apontou para o rapaz mais tosco, a rir às gargalhadas com os amigos, sobre o banco de madeira assinado, sob o pinheiro. Não senti nada à primeira. Não senti nada à segunda. Só senti à terceira. E já nem sequer me lembro porquê.
Escrevia poemas de amor como se fosse alguma trovadora de século dezanove. Passava as tardes a riscar folhas e, no final do dia, publicava esses textos e poemas na internet, com fotografias - os infames photoblogs - na esperança de que ele os lesse e percebesse o que eu sentia. No entanto, ele permanecia no silêncio.
Uma vez, ele foi dar um concerto ali ao Ginjal, no antigo Culto Bar. A minha amiga ia dar um sarau - não podia pôr a minha amiga em segundo plano, por isso engendrei esquema. Às sete e meia da tarde, apareci ali, à porta d Culto Bar, à beira rio, no Ginjal. A banda estava aí parada, a rir e a conversar, e destaquei-o numa qualquer t-shirt branca, como sempre. Espantou-se ao ver-me. Cumprimentei-o à portuguesa, dois beijinhos na face, e sorri-lhe. Toscamente, disse-lhe: "Não posso assistir ao teu concerto, mas vim te desejar boa sorte." E afastei-me a sorrir. Os amigos riam de mim. Ele ficou perplexo sem saber se me mandar à merda ou agradecer.
Por fim, agradeceu.
O amor desapareceu quando as férias chegaram e, com o passar do tempo, eu percebi que não era amor.
0 torradas