Crónica do Monstro

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Deixou-se arrastar pelo milheiral muito verde com medo de tocar naquele ferro frio que cortava toda a sua paisagem. Atrás de si, existia um rasto da sua existência, do milho pisado pelos pés nus da criança cheia de sonhos que nunca vira um pedaço de ferro na sua vida. As linhas horizontais estendiam-se até ao horizonte, até um fundo finito sob uma linha branca de nuvens que se formava debaixo do céu azulado. O mundo acabava ali, e começava na cabana de madeira envelhecida, atacada pelas térmitas, onde a Mãe cozia pão no forno de pedra. Pé ante pé, calcou o milheiral e fundamentou aquele seu rasto atrás de si. E, à sua frente, o ferro. Frio; e tocou com a ponta do pezinho. Áspero; e arrastou-o pela madeira. Pesado; e tocou-lhe com as duas mãos ainda muito pequenas. E, atrás de si, o milheiral marcava o caminhar longo de regresso à cabana, onde a Mãe cozinhava o pão no forno de pedra, onde o cheiro da massa cozida emanava e viajava e percorria o caminho calcado pelos pezinhos dela até à linha de ferro no chão.
Ao longe, ouviu um apito. E com ele, deixa-se acompanhar um conjunto de baques secos em concordância com um cuspir agreste de algo no ar. Havia fumo, havia barulho, e a terra tremia. Os pezinhos no frio ferro sentiram as vibrações de um futuro que desconhecia. Um elemento novo, e com ele, novas sensações. Uma curiosidade arrebatadora preenchida por uma excitação inquieta de criança de aventura alheia, desconhecida. Ao longe, o Monstro erguia-se de preto contra a linha branca das nuvens abatidas sob o céu azulado. O milheiral muito verde estremeceu, e a terra vibrava, e o Monstro aproximava-se. E voltava a apitar, e cada vez mais perto, as linhas de ferro no chão vibravam e estremeciam estranhamente. Ela soltou um pulinho para a terra, onde o chão ainda ganhava vida própria. Esperou que a terra se abrisse em círculo sob os seus pés e fosse toda ela engolida pelo milheiral; que o Monstro se aproximasse dela e a matasse numa só golpada; que o milho muito verde se abrisse em cúpula sobre ela e a abatesse como uma formiga na terra. Mas tudo o que o Monstro fez foi apitar uma vez mais e correr; correr à sua frente sobre a linha de ferro na terra, muito rapidamente, e desaparecer perante os seus olhos. E depressa, ele fugiu. E a linha de nuvens o sugou, e o céu azulado que sobre elas se abatiam o engoliu, e o Monstro desapareceu.
Quando correu de volta para a cabana, agarrou-se às saias repletas de pão da mãe e sacudiu-a de sorriso airoso na face. De pés na terra e aos saltinhos, perguntava em berros estridentes «Mãe, Mãe, eu vi um Monstro!» E a mãe nunca retirou os olhos do seu pão, que numa curta caminhada lançava-os para uma cesta no chão. «Não é um Monstro, filha,» respondeu «é um comboio. Serve para as pessoas viajarem para sítios muito longínquos»; «E quando for grande também posso andar de comboio?»
A Mãe poisou o último pão na cesta e colou as costas da mão à testa suada. Limpou a outra no seu aventarl branco e falou com uma seriedade respeitosa, «se viajas no comboio, vais à cidade. E quando conheceres a cidade, vais te esquecer do campo. Queres deixar o campo, filha? Queres esquecer o nosso milheiral e a nossa vista e a nossa vida?»
Surgiu uma expressão de desalento no seu rosto quando ouviu estas últimas palavras da Mãe. O cão preso na corrente nas traseiras da cabana ladrou e sacudiu a cauda como quem sente a ausência breve de um espírito prestes a partir, e ela desviou os olhos para o animalzinho peculiar. «Mas eu nunca me vou esquecer da nossa casa, Mãe», respondeu, com uma lagrimazinha pendurada no cantinho do seu pequeno olho.
«Um dia, vais partir para a cidade. Está em ti seres criada por entre uma civilização e não no nosso milheiral. Cabe a ti decidir isso, mas quando o fizeres, vai haver uma maturidade em ti que te impede de olhar para o nosso milheiral como agora olhas.»
Não lhe fizeram efeito tais palavras, porque eis que tal menina poucas delas terá compreendido, e portanto, nos anos que se seguiram, surgia este estranho binómio interior da menina que se transformava em mulher enquanto via o comboio passar nas linhas de ferro que nunca antes vira e desaparecer sob a linha de nuvens, abatidas sob o céu azulado. E enquanto percorria aquele caminho pisado do milheiral verde, o cão ladrava, excitado por entre as correntes, no desespero de uma chamada pela menina quase mulher que via desaparecer pelas linhas de ferro vincadas no chão; num âmago clamor por um augúrio que se aproximava, por cada dia, hora mês, ano, que aquele comboio atravessava e pisava e riscava e rasgava as linhas do campo verde plantado pelo milheiral.
Quando era a menina já mulher, sem que sua Mãe soubesse, galgou ela para cima do comboio às escondidas e deixou-se levar pelo caminho a descoberto da descoberta por que ansiava. De cabeça para fora da carruagem, viu a cabana de madeira reduzir-se a um pequenino fio de castanho fundido com todo o verde forte do milheiral, enquanto ofegava a ânsia da sua entrada nas nuvens brancas, abatidas pelo céu azulado. Acima de si, até o sol iluminava o caminho com clareza esperta. O vento forte arrebatava-lhe as faces rosadas do frio que não parecia sentir, fosse esta sensação assimilada à liberdade por que tanto ansiara. Galgada sobre aquele que um dia fora o Monstro, via as coisas correrem para lá de si como se a abandonassem a ela, e não ela abandonasse aquele lugar. E por toda essa paisagem que lhe fugia através do vento gélido, apenas distinguia o verde do milheiral e o seu carreiro outrora calcado pelos calcanhares da criança curiosa que tocara nas linhas de ferro com os dedinhos um dia, quando vira o Monstro aproximar-se do milheiral pela primeira vez. Mesmo ali, à medida que a cabana desaparecia, agora ela abatida sob a nuvens, engolidas pelo céu azulado, ela conseguia distinguir o castanho da terra mesclado com o verde do milheiral.
O sol desapareceu-lhe subitamente e toda a luz foi sugada por uma força misteriosa que lhe rondava todo o ser inerte no seu susto de viver. Parecia que entrara num espaço vazio de negro onde o vento mais gélido se tornava e a ausência da matéria lhe proporcionava um ar aterrador. Como se o Monstro tivesse, finalmente, aberto a sua boca e a tivesse engolido. Sentou-se sobre o chão sujo e agarrou as próprias pernas. Escorria-lhe o suor frio pela testa enquanto limpava com os dedos trémulos. Encaracolava-se sobre si e contorcia os dedos dos pés como se a sensação não parecesse ter fim. E eis que quando se encontra embebida naquele misto de horror com uma leve pitada de prazer desconhecido, ela destaca a luz a um fundo inalcançável, que depressa fica ao alcance da sua vista. E gradualmente, um sol brilha de novo, diferente, para lá da negridão em que penetrara.
O ar é então substituído por um bafejo quente e um aroma estranho a algo que lhe arranhava os canais nasais. Um misto de doces com mau cheiro, um cheiro que não sabia identificar, um pesado de agreste que era que lhe causava peso sobre a cabeça, e uma tontura assolou-lhe o espírito quando se ergueu sobre os pés trémulos e espreitou para lá da carruagem. No que viu, havia um fascínio claro e um delírio límpido, havia uma liquidez de prazer no deleite em que se encontrava. Era tudo tão nítido como a satisfação que lhe pintava as faces de rubro e lhe secava lentamente as gotas de suor da testa e da palma das mãos.
E enquanto ela se deleitava, a Mãe deixara de fazer pão no forno de pedra. E o cão ladrava. Agarrado à sua corrente, arrastava-a todas as noites, e quando não ladrava, soltava gemidos noite fora, sob um luar plácido, pintado de horrores assombrados pelo Monstro que, duas vezes por dia, rasgava o milheiral verde da terra e se deixava devorar pelas nuvens muito brancas, engolidas pelo céu azulado. E a Mãe levava as mãos à cabeça e clamava, «Levaste a minha filha, Monstro» e chorava «comeste a minha menina e engoliste-a, devolve-ma, Monstro, ela não te pertence, devolve-ma!» E sempre que o Monstro passava, ele não respondia, se não em ruídos e baques e barulhos graves dos raspares de metal e do seu rugido rebelde.
Passaram-se dias até que o Monstro devolvesse a menina, agora mulher, à sua Mãe, e dia algum teria havido tão horrível como o dia em que o Monstro levara a menina da sua Mãe. Vem ela suja, com as mesmas roupas, coberta de pó e de atrocidades, mas maior atrocidade para a Mãe era o sorriso orgulhoso na sua face. E mesmo tornando as sua próprias frases em profecia, Mãe nunca abdica de uma filha; e assim, a Mãe lutou. E quis abraçar a filha quando a destacou caminhando pelo milheiral, esse tal carreiro que de tanto andar sobre ele se formou. Mas a menina, agora mulher, não deixou. E ao repeli-la, explodiu estrondosa discussão essa que terá sido a de Mãe e filha. Os gritos sobrepunham-se ao Monstro, e desta vez, o Monstro não engoliu ninguém. O cão não se atreveu a ladrar, roçou as correntes umas nas outras, escondeu o focinho nas patas e esperou.
O milheiral verde anteviu a desgraça. O cesto não tinha pão nesse dia. O Monstro correu mais depressa. Esperou.
Os gritos da agora mulher soavam a diabo de pernas de mulher e a vozes ruidosas de um além de raiva extremo. Nem o Monstro se atreveria. E quando ela pegou na pá de metal que a Mãe usava para tirar os pães do forno, não anteviu que impulsão sua era a de a soltar sobre a cabeça da Mãe. Não anteviu que sua raiva a levasse a agir perante um extremo tão inóspito. Não se vira vez alguma embriagada de tamanha raiva e ódio como no momento em que as mãos tocaram no metal da pá e a balouçaram, aguçada, na direcção da cabeça da Mãe.
Deitou-se, então, no chão ensanguentado enquanto recapitulava os erros. O sangue vermelho escorria pela cabeça da Mãe até à terra; pintava o milheiral muito verde, muito vivo, com o cheiro fétido do matricídio. Nas suas mãos, escorria-lhe o sangue da morte; e nas veias, o sangue da vergonha. Sem que alguma vez viesse a saber como, o cão soltou-se da sua corrente e veio deitar-se ao lado da dona desgraçada. Do bolso do seu avental, caía um pão fresco que acabara de retirar do forno de pedra, o único que cozera enquanto a menina, agora muito mais que mulher, se ausentava. E também nele o sangue manchava o miolo branco e penetrava a côdea castanha torrada. O cão cheirou o pão, não com fome, mas como se sentisse nele o último toque humano da mulher assassinada, e encontrasse nele um toque reconfortante de despedida que não conseguira encontrar. E assim, a menina tirou o pão das mãos da Mãe morta e comeu-o; comeu o corpo instigado representado numa massa cozinhada de côdea e miolo e absorveu na sua língua o sangue que embebia. Comeu e chorou enquanto das suas mãos pingava sangue; sabia-lhe a morte.
E quando terminou, levantou-se. Durante horas, o Monstro não voltou a passar. Então, deitou-se sobre as linhas de ferro que rompiam a beleza e paz do milheiral verde vivo, agora atravessado por aquele riacho vermelho de vida ida; sentiu o ferro frio na sua pele gelada. Não estremeceu uma única vez. Não se atreveu a moveu; esperou apenas que o Monstro passasse.
Sobre o milheiral verde, pintava-se a desgraça. Da cesta, comera-se o último pão. E o monstro apitou. O ferro tremeu. Ela não.
Esperou.

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