Crónica Boémia

04:04

Despertaram. Em uníssono silêncio. Abaixo de si, as rotinas; em volta, as azáfamas diárias. O quotidiano urbano e rural. Um pássaro canta lá fora no jardim, ela desperta sob um olhar cansado de olhos ainda colados da sonolência, dos pesos e contrapesos dos desvaires da noite anterior. Uma mulher grita para a outra, ele desperta sob um movimentar brando do corpo cansado dos desvaires da noite já ida. Estão rodeados de branco e de amarelos mortos do sol das três da tarde. O peso da vida reflecte-se no peso das cabeças ocas de encosto ao colchão. Ali, não existe nada. A vida corre diária num sábado tardio, ouvem-se carros, ouvem-se gritos, ouve-se o vento e a chuva, ouvem-se as turbulências da vida diária frenética, desenfreada, perdida nas artérias pulsantes do coração de Lisboa; mas ali, onde eles estão, não existe nada. Não existem almas nem sopro de vida algum que se faça valer. Não existe cor nem ânimo nem qualquer suspeita de humanismos que possam povoar o chão, as paredes, o colchão onde se deitam ou até mesmo a manta com que se tapam. Não existe vida nas garrafas de álcool vazias à sua volta ou nos cigarros que agora acendem e repousam nas suas bocas. Não existe matéria nos corpos gelados da tarde fria de inverno em que acordam tardiamente. Não existe nada; não existe sequer a evidência da própria ausência. Ali fica o limbo de duas almas perdidas nos reboliços daquela juventude de que não conseguem largar. Ali fica a linha invisível e divisível entre a loucura e a sanidade, entre os desesperos humanos e senso comum. Ali, todas as coisas morrem na entrada e renascem à saída. Ali, não se sorri nem se chora. Não existem emoções. Existem apenas duas faces apáticas olhando o tecto de tinta oca e estalada a abater-se sobre si de tão alto se encontra, de tão distante lhes parece. Ali existem apenas os olhos vazios e secos que observam o tecto clareado de um sol morto tardio salpicado pelas nuvens carregadas de chuva que mancham os céus. Ali existem apenas os lábios que seguram os cigarros de onde pende a cinza morta que desce pelos tecidos que mancha, que flutua no ar vago que os circunda. O que ali existe não é justificável a toda a lógica exterior, porque ali existe um nada que se demonstra como tudo para o nada que o habita. É uma constante ausência das presenças que o habitam.

Quando um dos corpos se move finalmente, é para olhar o outro que está do seu lado: a primeira evidência de matéria, um negro de cabelos que pinta todo o claro morto e irritante em sua volta. Riscos de um peso moral que atingem aquele corpo que se move como uma flecha no peito; o outro corpo, não se move. Nada dizem, esperam comunicar-se assim mesmo, através dos mistérios telepáticos que ambos desejam possuir. Assim como nada existe, e tudo se revela, também as palavras por lá emanam, mas nenhuma, na realidade existe. Não existem palavras para serem pronunciadas naquele espaço. Um espaço sem língua. Um espaço sem fala. Os corpos comunicam-se com os olhares que vão provocando; quando o outro corpo responde, é olhando também para o lado, para os outros olhos baços da sonolência e do abate desordeiro das rebeldias alheias, é seguindo aquele rosto, que num momento em que as coisas começam a ganhar formas e significados à medida que todos os sonos se esmorecem e a vida pinta-se de novo perante as paredes e o sol morto, se revela de mulher. E terão então Adão e Eva, eles próprios, deitados numa tarde de desobediências sobre um colchão numa casa que não é abandonada, mas abandona qualquer lógica. Já teremos matéria; ali, começam a surgir as significâncias outrora perdidas no fulgor da noite; ali se entendem as discrepâncias que outros se recusarão a sentir, as amálgamas de cores e sons e vidas e sonhos e todas as ausências que agora se revelam e se justificam. Tudo nasce, tudo renasce. Tudo se revela quando os olhos se olham e se deixam colorir por essas misteriosas cores do acordar. Tudo o que se encontrará para trás desaparece. O sol que entra pelas janelas abertas das salas ao lado apagará todas a infâmias daquela escuridão que os sugou. Os cigarros acabam de queimar. As cinzas flutuam tão cinzentas e mortas como o que aí se passara na obscuridade da noite ida. Mas quando o sol pinta as paredes mal pintadas e a tinta lascada e os entulhos de cartões e madeiras de uma tonalidade amarela morta, quando os pássaros chilreiam e as mulheres gritam em seu ofício rotineiro das tardes de sábado nas artérias e veias e todo o sangue corrido do centro de Lisboa, tudo renasce, tudo ganha forma, tudo se converte na matéria perdida da ausência do acordar, do limbo em que se perderam. Tudo porque se olham, e numa das faces, naquela feminina que outrora olhara o tecto e vira a coluna de fumo, a nuvem imensa cinzenta que lhe turvara a visão, que lhe distorcera o mundo, que lhe secara os olhos ensonados, tristes, perdidos, ocos, nos seus lábios secos, nos lábios sensabores e recheados de bafos idos das loucuras de uma noite arrojada, esboça-se um sorriso, como suspirar de alívio por algo que, para aqueles que não o terão presenciado, que não o poderão presenciar ou entender em qualquer outra forma lógica que não nos enquadramentos daquele quarto, não poderiam saber o que era. Não foi retribuída.

Os corpos moveram-se ainda mais. A matéria estava completamente formada; o sol já não era amarelo morto, era apenas sol; a nuvem de tabaco acima de ambos desaparecera. Os corpos voltaram a regelar de frio. Toda a beleza dessa ausência se quebrara como fino vidro. Todo esse limbo se desmitificara para sempre; permanecia a memória fotográfica daquele que o deveria relembrar e registar. Toda a ausência de essência desaparecera. Todos os motivos se esmoreceram. Levantaram-se. Vestiram-se.

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