Crónicas da Inocência ou Como Apanhar a Primeira Desilusão

03:27


Quando era adolescente, tive uma amiga.
Nomes, não tínhamos, por ordem às nossas mães nos terem baptizado com nomes idênticos. Os professores baralhavam-nos porque éramos muitas, muitas Anas Filipas, lista abaixo na chamada de presença, e depois havia aquelas duas que estavam sempre juntas, que se confundiam. Quando nos fartámos dos nossos nomes por serem iguais e não nos distinguir, inventámos novos nomes.
A nossa amizade regia-se por essa estranha espontaneidade que residia algures sobre uma ténue linha situada entre a rebeldia e a criatividade. Era algo como nunca nenhum dos nossos colegas tinham visto; era estranho e delicioso ao mesmo tempo, e como quem olha por estranheza, assim ninguém nos conseguia largar o olhar. Éramos pontos coloridos num mundo monocromático escolar; partilhávamos os mesmo gostos e paixões, queríamos mudar o mundo através da arte. Achávamos que tínhamos tanto para dizer, tanto para mostrar. Achávamos que as nossas vozes seriam um dia ouvidas e que esta amizade seria o nosso nó de marinheiro unificador das nossas crenças. Porque as nossas mães nos deram os mesmo nomes e, mesmo assim, nós decidimos mudá-los. Reinventámos a nossa individualidade.
Quando estávamos aborrecidas da ausência de cada uma, fugíamos de manhãzinha para a escola, embora as aulas só começassem de tarde. Encontrávamo-nos no portão traseiro e subíamos a rampa alcatroada por onde cortávamos caminho pela escadaria pequena construída sob troncos de árvores cortadas. E falávamos. Falávamos sobre tudo aquilo por que uma adolescente se sente impelida a falar na sua idade. Apontávamos para os rapazes sentados sob o banco grafitado debaixo do pinheiro e avaliávamos cada um deles. Todos os dias, uma nota diferente. Discutíamos os rapazes da banda da escola escondidas sob algum telheiro de zinco nas escadarias que ligavam os pavilhões. Sussurrávamos, para que não no ouvissem. Quando a campainha soava o chamamento ordeiro para a primeira aula da manhã, ficávamos sozinhas no pátio e falávamos mais alto. Às vezes, voltávamos a sussurrar para que as contínuas não nos ouvissem, não compreendessem as nossas palavras. Inventámos códigos e criámos piadas privadas; ninguém nos entendia – privámo-nos do mundo.
Havia uma inocência presente nas nossas palavras. Uma ausência de matéria carnal que se cospe nos dias que correm pelos dentes dos adolescentes. Existia toda uma inocência pura nas palavras que escolhíamos para descrever os nossos rapazes preferidos. Às vezes, inventávamos histórias. Escrevíamos essas histórias ou contávamos em voz alta quando ninguém nos ouvia. Por vezes, um professor saía do pavilhão para nos mandar calar quando os nossos risos ecoavam demasiado alto por um Pragal adormecido. Quando os rapazes sentados debaixo do pinheiro iam para as aulas, sentávamo-nos naquele banco grafitado, como se conseguíssemos absorver alguma informação perdida, algum segredo masculino, qualquer informação que nos ajudasse a conquistá-los, a apreciá-los.
Quando tínhamos muito sono, saíamos da escola e íamos ao café debaixo da arcada dos prédios ao lado, onde o senhor nos vendia Red Bulls cegamente. Após a primeira vez, instaurou-se a tradição e passámos a beber Red Bulls todas as manhãs para o pequeno almoço. Às vezes, as pessoas falavam. Insultavam-nos, chamavam-nos loucas, parvas, crianças. Achavam que éramos rebeldes. Vejo hoje nada mais que um ritual de adolescente, isso de apontar dedos aos considerados inferiores e rir. Hoje, eu mesma aponto o dedo àquelas duas adolescentes sentadas atrás do pavilhão de educação física, ou nas traseiras da cozinha da cantina, ou nos banquinhos ao lado da secretaria, ou até na escadaria ao lado do pinheiro; aponto os dedos a essas duas adolescentes que bebiam Red Bulls pela manhã porque assim instauraram um ritual cerimonial da celebração da sua amizade.
Quando faltávamos às aulas, fugíamos para a biblioteca da escola para ler livros de poemas, e ficávamos ali sentadas, àquela mesa junto à janela onde uma planta pendia as suas folhas sobre as minhas páginas, onde as sombras se deixavam incidir sobre as palavras românticas por que me deixava deliciar. Líamos poesia, às vezes prosa, contos, livros inteiros; as contínuas mandavam-nos calar por cada cochichar que sussurrávamos. Outras vezes, escapulíamo-nos para a biblioteca da cidade e sentávamo-nos durante horas na secção infanto-juvenil a olhar para as capas coloridas dos livros que lêramos na nossa infância ainda mais ida. Às vezes, requisitávamos esses livros. Outras, escondíamo-los atrás de outros, guardávamos mensagens secretas dentro de alguns desses livros, abandonávamos textos à espera de serem encontrados por algum apreciador, por alguém que os valorizasse.
Falávamos de cinema e de literatura; discutíamos Almeida Garret e Tolkien, gabávamo-nos das bandas de rock que os outros rapazes ouviam e nos levavam também a ouvi-las. Falávamos dos filmes que víamos, como ela, a minha amiga, se deslumbrava com o Fight Club e eu contava a história de como Van Helsing me fizera apaixonar por cinema. Vestíamos roupas originais; não usávamos botões, mas alfinetes-de-ama; enrolávamos tererés nos nossos cabelos feitos com lã que comprávamos nas retrosarias de Almada; escapulíamo-nos para aquela loja sem nome no M Bica, nas horas de aulas, e gastávamos o dinheiro em piercings, em pins, em cintos coloridos, em malas de celebridades americanas, em fitas coloridas para o cabelo, em maquilhagem, em brincos e colares. Às vezes, comprávamos um lanche no supermercado mais próximo e lanchávamos bolachas e pacotinhos de leite ou sumos no jardim, sob a sombra de uma árvore, deitadas ao comprido sobre a relva.
Um dia, deitámo-nos sob uma das árvores a uma tarde de primavera; olhámos o céu azul e deixamo-nos deixar ficar a sentir a brisa cuspida pelo rio, lá ao fundo, em Cacilhas, e a ver as folhas a abanar. Estava um silêncio de uma paz abismal. Apenas se ouviam as vozes de crianças que regressavam da creche ou da escola. Quando o vento voltou a soprar, lembro-me perfeitamente das minhas palavras ao observar as folhas da árvore abanarem, ao delinear os traços luminosos do sol dourado a escapulirem-se por entre elas, ao escutar o seu ruído. Disse: «Parece que as árvores nos estão a aplaudir».
Um dia, achámos que iríamos ser músicas e decidimos escrever canções. Eu roubava a guitarra do meu irmão e tocava-a às escondidas, aprendia sozinha. Levava-a com os meus outros amigos para a praia, nas manhãs de calor que aproveitávamos, e tocava sozinha enquanto eles tomavam banho no mar. Compus canções através daqueles poemas que eu escrevia, a maioria de amor, inspirados naquele rapaz de quem tanto gostava. Enchemo-nos de orgulho, de ilusões de futuros promissores; deixávamo-nos influenciar por aqueles artistas que ouvíamos todos os dias, à noite, enquanto conversamos pela internet. Quando os nossos dedos não aguentavam escrever mais, passávamos horas a falar ao telefone. E, às vezes, eu tocava as músicas novas que compunha.
Éramos, antes de tudo, amigas. A nossa amizade era feita de pactos e acordos. Trocávamos pulseiras que fazíamos uma para a outra e fazíamos juras de estima para com a outra. Tirávamos fotografias nas máquinas instantâneas do Centro Comercial Sommer e às vezes fugíamos para a loja do chinês em frente à escola para roubar pulseiras de plástico coloridas. Quando haviam greves de estudante, faltávamos às aulas e entregávamos justificações assinadas pelos nossos pais que nos comprovavam como participantes na greve – nessas tardes, íamos à praia: deitávamo-nos nas caixas de areia do campo de educação física para os saltos em comprimento sob o sol da tarde e deixávamo-nos ali, apreciando a brisa que nos lavava a realidade das faces, enquanto líamos os poemas e as histórias que escrevíamos.
A vida, como toda a realidade que nos circunda, estragou-nos toda essa inocência. As pessoas queixavam-se; éramos amigas demais. Depois, veio a tragédia. A tragédia de nos tornarmos adultos depressa demais, o trágico-romântico que é a entrada para a (primeira) universidade, de celebrarmos os dezoito anos e nos tornarmos adultos. Aprendi que a desilusão e a mentira caminhavam lado a lado, de mãos dadas, demasiado cedo. Aprendi que a bondade a inocência eram coisas facilmente disfarçáveis, e que o pintar de uma vida ligeira e plena de amizade, como aquela que sempre levara, era um trabalho artístico bem mais fácil do que o fazia na minha cabeça.
A amiga desapareceu para sempre. Estava doente – mas não era das doenças que nos afectam fisicamente. Ela tinha doenças na sua mente, doenças que a projectaram perante mim de uma forma que na realidade não o era. Essa doença em particular assombrou-a, e aquele esfriar da traição que nos aperta o pescoço à noite, quando nos deitamos e pensamos que mal fizemos para merecer tudo aquilo, essa sensação de peso morto sobre os nossos ombros assolou-me era ainda criança demais para saber o que era. Aprendi que os poemas que a minha amiga escrevia eram falsos; que as suas palavras eram ocas; que as suas histórias erma mentira; que os seus filmes eram paixões falsas. A doença manipulou-a; manipulou-nos. Escorracei-a. Cresci.
Tornei-me adulta.
Hoje, sentada em esplanadas enquanto mexo o meu café com uma colher de metal, puxando do cigarro que, com aquela idade, jurara nunca fumar, e acendendo-o com o isqueiro que tanto apreciava quando era mais nova e pegava fogo, divertidamente, aos lenços de papel que retirava da mesa, recordo essa amizade e o que dela se pode aprender.
Éramos jovens com grandes aspirações; éramos artistas precoces que o tempo e as doenças separaram. Éramos aspirantes a músicas, a cineastas, a artistas plásticas, até a actrizes. Todos os sonhos de duas crianças adolescentes passaram pelas nossas cabeças – fomos vegetarianas e activistas, fomos artistas e rebeldes, fomos revoltadas e românticas, fomos alunas exemplares e castigadas. O tempo passou. A doença levou-a.
Quando a minha amiga nos contou da sua doença, não a quis perdoar, e a minha inocência de criança fez de mim demónio. Insultei e humilhei e virei as costas e cresci, cresci em direcção àquela nova etapa da minha vida que era a universidade. Cresci em direcção aos meus dezoito anos, à inauguração da minha idade adulta. Achava que cresci – achava que ela parara no tempo. Doente.
A guitarra que eu tocava apanha pó atrás da porta da sala de jantar; já não a sei tocar, já não entendo a música, já não a sei ler nem compreender. Os poemas desapareceram, voaram, foram levados, talvez pela doença; outros permanecem esquecidos na caixa atrás da porta do meu quarto, amarelecidos pelo tempo. As histórias foram esquecidas. Os rapazes cresceram também. Eu cresci. Crescemos todos.
Hoje, falta-me essa espontaneidade que um dia nos marcou, que um dia nos tornou únicas na nossa maneira de ser, que levou os dedos a apontarem para nós e a franzir o sobrolho. Éramos olhadas não por desdém, mas porque tínhamos de ser observadas. Éramos duas figuras centrais escandalosas de um enredo pleno de dramas e inocências adolescentes.
Éramos, sobretudo, amigas.

You Might Also Like

0 torradas

Etiquetas