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O Peso das Gerações

Entre 1954 e 1958, Chris Market tornou-se editor da série de livros de viagens Petite Planète, dando-lhe um particular toque político à série que, até então, se caracterizava por atraentes livros de viagens. Chris Marker encarregou-se em particular de fotografar para três edições de três diferentes países: China, União Soviética e Portugal.

Embora diferentes no domínio político, geografia e mesmo cultura, o que une estes três países era o regime então vivido: um regime totalitário. A fotografia acima é da edição de Portugal. Uma fotografia que, como as restantes, aliás, revela o que era então vivido em Portugal: um regime totalitário que compunha uma imagem “para inglês ver”, mas na realidade se pintava de uma extrema pobreza. E como Chris Marker denota nas suas fotografias, particularmente da edição sobre Portugal, a nobreza do nacionalismo é revelada uma máscara do totalitarismo.

Esta fotografia em particular mostra uma mulher velha a meio de uma acção. Não sabemos o que ela está a fazer – se fala, se canta. Mas é uma mulher velha escondida numa semi-escuridão reforçada acima de tudo pelo lenço que lhe cobre a cabeça. É a partir dess aperspectiva que temos de a comparar com a fotografia ao lado: uma criança olhando para a base da estátua do Marquês de Pombal de uma figura masculina que segura com dureza o peso da estátua sobre os seus próprios ombros.

Trata-se de uma representação binomial das gerações. O passado e o presente de então – ou talvez o futuro que o menino vê o homem segurar aos ombros.

Estando eu numa geração ainda mais longínqua que aquelas duas representadas acima, esta fotografia tocou-me profundamente. Passei toda a minha vida a ouvir a minha família falar sobre os dias em que se vivia com medo: de olhos esbugalhados, orelhas trémulas e bocas fechadas. Todo e cada um da minha geração ouviu estas histórias: de como alguém que os nossos pais conheciam foi torturado, de como alguém próximo da família entrou para a clandestinidade depois de ser perseguido. De como a minha tia teve um medo de morte por encontrar um folheto ilegal. De como, por vezes, alguém tinha de dar mão de uma salário inteiro para se manter a si e à sua família em segurança. Como uma só família partilhava uma sardinha. Como não havia dinheiro para sapatos. Como alguém foi morto a tiro pela polícia no meio da rua.

Visitei Berlim em 2008 e aí entrei em contacto mais íntimo com o museu da RFA. A minha mãe, que estava comigo, apontava sempre e informava, num tom que não era tão de dor ou peso quanto, por vezes, a minha geração o espera, mas antes com a força apenas esperada da nostalgia: “Era exactamente assim em Portugal”.

Marianne Hirsch, a partir de uma análise de Maus, a banda desenhada sobre as memórias do pai do autor enquanto judeu aprisionado num campo de concentração, formulou o termo pós-memória. A geração do pós-memória é aquela que experiencia em segunda-mão as memórias e traumas da geração anterior. Aqueles que recordam a experiência compartilhada através das palavras de seus pais, mas de uma forma que é de tal forma vívida que essas passam a ser as nossas experiências. Os traumas são assim transmitidos para uma segunda geração, residindo então nas evidências documentais – fotografias, documentos, textos. Marianne Hirsch chamou à geração do pós-memória os filhos de Auschwitz, mas o conceito é aplicável a outras gerações filhas de traumas de outros eventos mundiais. Acho o termo útil, mas não são os filhos de Auschwitz de Marianne Hirsch a que me referirei daqui em diante.

Lidar com fotografias do passado traz um grande peso para as gerações que herdamos traumas da geração anterior. Sabemos agora o que significam. Não nos limitamos a olhá-las; porque os nossos pais estavam lá, nos mostraram essas imagens e nos contaram as suas histórias, compreendemo-las e sabemos as suas histórias também. Também nós as experienciamos como se tivéssemos estado lá. Respeitamos as memórias dos nossos pais e e sentimo-las como nossas por cada vez que eles mesmo as contam, uma e outra vez.


O menino da fotografia, que olha a estátua, é todas as gerações vindouras após uma grande crise – particularmente humanitária. Quando vi esta fotografia pela primeira vez, entendi-a como a iconografia da geração pós-memória – de todas as gerações pós-memória. Carregamos o peso de um passado que não nos pertence, não porque nos foi imposto – não só – mas porque assim o escolhemos, para lhes honrar a memória, o seu passado, os seus traumas. Ultimamente, acredito que escolhemos olhar para isso da melhor maneira possível, pois afinal, tudo isto é se não uma lição aprendida.

6 de Novembro de 2013

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