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Nicholas Sparks, depois de todos os seus livros adaptados ao cinema, depois de gastos todos os plot-twists amorosos, depois de arruinar todos os casais sulistas americanos, matar protagonistas e isolar mulheres com Alzeimar, depois de reutilizar todos os 5 actores brancos de Hollywood (vocês sabem quem são eles) para a mesma narrativa com vinte e três variações diferentes da definição de "amor trágico", renovou-se. Fez um musical. Chama-se La La Land.

O filme passa-se numa realidade que eu reconheço imediatamente que é actual, porque faz lembrar aqueles interiores de barbearias vintage da baixa de Lisboa: é no presente, mas os personagens parecem ter um fetiche inabalável pela década de '50.

Mia trabalha nos estúdios de Hollywood a servir cafés às maiores estrelas das majors, cabisbaixa e soturna por o seu sonho ser ao mesmo tempo inalcançável e tão próximo, abalada pelas suas tentativas falhadas em cumprir o seu sonho. Quer ser actriz, claro. Apesar de ter já tentado uma série de castings, nunca conseguiu, aparentemente, nada. Nem como figurante num anúncio para a diabetes, aparentemente. Sebastian, por seu turno, é um branco que usa sapatos de sapateado dos anos '50 o filme todo, mesmo quando não dá claramente jeito usá-los, e que tem também o seu próprio sonho: salvar o jazz. Ironicamente, o John Legend não acha isto ofensivo, mas dá-lhe a dica de que, se calhar, é melhor tirar a cabecinha do passado e seguir em frente. Sebastian acha que o jazz morreu e decide viver em Los Angeles para o salvar porque, aparentemente, ninguém lhe disse que foi no Lousiana que o jazz nasceu.

Mia e Sebastian conhecem-se então no trânsito, uma troca de olhares e um pirete que tenta ser divertido mas que ditou perfeitamente o nível de humor e previsibilidade para o resto do filme. Os dois voltam a cruzar-se quando Sebastian, pianista num restaurante, é forçado a tocar músicas de Natal pelo mesmo gajo que traumatizou bateristas no Whiplash, mas num laivo de coragem, e porque o seu amor ao jazz é demasiado grande para sucumbir às festividades natalícias, decide borrifar-se para o que o patrão diz e improvisar uma música de sua criação - jazz, caso se estejam a questionar - resultando no seu despedimento. Mia entra no restaurante, atraída pela música, claro, porque o homem mais branco de Los Angeles é o melhor pianista jazz que vão conhecer, e assiste a tudo. Quando por fim se aproxima de Sebastian para o elogiar, o cavalheiro dá-lhe um encontrão com o ombro e manda-se bugiar. Romântico.

Reencontram-se então numa festa onde uma banda está a tocar covers dos anos '80, onde um minuto e meio do Take on Me nos faz esquecer este inferno suburbano-americano apenas por um momento, e Mia, piçada com a situação, pede então à banda que toque o I Ran, supostamente porque dá forte no piano. O pianista é o nosso herói do jazz, caso não tenham percebido e, irritado, Sebastian diz-lhe que é um insulto pedir a um músico a sério que se toque o I Ran. Imaginem como é que os A Flock of Seaguls se sentiram. Foi aqui que fui fazer crepes e me passou uma parte musical que, a revelar pelo resto do filme, foi irrelevante.

Daqui em diante, a melhor forma de entender o filme é seguirmo-nos pela música do Rui Veloso, o Anel de Rubi.

No mix do romance da actriz falhada e do músico branco de jazz, o nosso Vanilla Ice do improviso sugere que ela escreva um guião. Não percebi bem para quê, porque se torna irrelevante o resto do filme visto que ela até no guionismo se torna falhada. Sebastião, vou chamar-lhe assim porque soa à beto, aceita então um emprego como pianista numa banda de John Legend, que para mim é a parte mais estranha de todo este filme. É então que John Legend lhe diz a deixa mais inteligente de todo o filme, e a única coisa que vale a pena, logo a seguir ao próprio John Legend: que ele está fixado no jazz do passado e que convém seguir em frente.

Segue então uma vidinha de tournés do nosso Sebastião enquanto Mia permanece em casa a escrever guiões (acho eu? Fui fazer mais crepes) e a tentar audições falhadas e a actuar em teatros de beco sem nenhum público, e de dona de casa solitária, nos seus vestidinhos de roda e sapatinhos de fivela, que é para não nos esquecermos que este filme tem uma vibe de anos '50, caso o look dos nossos protagonistas não o tenha revelado o suficiente, fica o sexismo subreptício. Dá-se então uma cena em que Mia vai ao concerto da banda de Sebastião. John Legend absolutamente arromba com todo o público, na sua voz excepcional, até que dá a dica de "dá-lhe, teclista" e cai um foco de luz sobre Sebastião. Mia fica meio horrorizada, abalroada pela multidão que se está claramente a cagar para o teclista branco e focadíssimo no John Legend, e afasta-se, a desilusão no seu rosto apenas ofuscada pelas luzes coloridas que, agora, ditam a Mia que ela é ainda mais falhada do que foi até agora - não sou eu que o digo, é o filme.

Os dois separam-se depois de Sebastião faltar à estreia da peça medíocre de Mia onde três pessoas vão assistir e porque Mia não consegue suportar que o Sebastiãozinho ande em tourné enquanto ela não consegue nada da vida, mas no dia a seguir é chamada para um casting que resulta finalmente do seu sucesso. Fast forward cinco anos e Mia é já tão conhecida que toda a gente no exacto café onde ela trabalhava se baba e borra pela sua presença, o que é justificado quando se vê que ela casou com o produtor - tal e qual como no cinema de Hollywood dos anos '50, percebem?

Os dois reencontram-se, agora Sebastião tem um bar de jazz popularusco e desta vez quem é atraído pela música é o marido de Mia, e os dois trocam olhares e viram cabeças da maneira que todos conhecemos porque já vimos pelo menos um filme de Nicholas Sparks. Seguem as suas vidas, Mia sendo a diva que sempre sonhou, Sebastião salvando o jazz, um instrumento de cada vez. E Hollywood branco delira, afirmando que nunca houve nada como este filme. A grande lição é que Mia aprendeu finalmente a gostar de jazz e que Sebastião viu o sketch de Gato Fedorento e aceitou que também é bom "à média e à belga". E pela segunda vez, Damien Chazelle conseguiu não fazer jus à verdadeira origem do jazz, entregando-o às saladas de maionése hollywoodescas como tanto a Academia adora.

O filme tem uma composição, no mínimo, esquisita. Era claro que o realizador tentou misturar a estética dos anos '50 com a actualidade, mas fê-lo de uma forma que transforma a personagem de Ryan Gosling num daqueles pretensiosos que se senta a um canto do Starbucks com uma máquina de escrever, que, de certeza absoluta, frequenta a Fígaro e que acredita que só ele sabe o que é o verdadeiro jazz, porque já ninguém sabe o que é o verdadeiro jazz, nem mesmo o John Legend ou os outros negros profissionais de jazz; e Emma Stone numa sonsinha de vestidos coloridos que se deixa levar pelo estilo de vida, que assume ser deslumbrante, das estrelas de cinema, com as quais se cruza e claramente inveja, sem razões válidas mais que "é o meu sonho". A cinematografia - que nem chega ao trabalho de cor que Mad Max recebeu - não salva o vazio desta história.

E depois há o jazz, aquele que o branquelas do Sebastião quer salvar porque, afirma, está a morrer. O jazz, que tem uma história revolucionária na história afro-americana, um estilo de música que nasceu das caves do Louisiana dos recém-libertados da escravidão e que migrou para Nova Iorque sob a forma dos clubes nocturnos depois da lei de Jim Crow devastar os estados sulistas. Esse jazz. Ryan Gosling quer salvar esse jazz, porque ele está "a morrer".

Vou fazer uma pausa.

No século XIX, um fotógrafo chamado Edward Curtis acreditava que a população nativa americana ia morrer. Tanto assim o cria que criou o projecto "vanishing race", em que se comprometeu a fotografar o máximo possível os nativos americanos nas suas reservas. As suas fotografias representam indígenas americanos em vestimentas "típicas" e em posições frontais, cruas e o mais rígidas possível. Mas Curtis era também conhecido por escolher, em várias ocasiões, que vestimentas deveriam estes indígenas usar e em alteral qualquer indício de modernidade: numa das suas famosas fotografias, eliminou um relógio. A sua tentativa de "salvar" a raça de que estava a desaparecer resultou num aparato caricatural de várias tribos onde, aparentemente, a modernidade não chega porque, para sempre, para Curtis, serão os "nativos", os "indígenas" - e para os nativos-americanos, algo entre uma ofensa e uma piada de mau gosto.

A cena em que Sebastião leva Mia a um bar de jazz para lhe ensinar o que era o "o verdadeiro jazz" (e diz o Rui Veloso: a saliva que eu gastei para te mudar), em que ele toca aí piano e os músicos - afro-americanos do jazz liderados por John Legend - ficam tão impressionados que exigem que Sebastião se junte a eles, fez-me lembrar Edward Curtis. Não porque o homem branco quer tocar jazz, mas porque este homem branco quer salvar um estilo musical com tanta força que o quer fazer ultrapassando, inegenuamente, aqueles pertencentes à comunidade que o representa. Durante todo o filme, Sebastião é tratado como um salvador, ao ponto de a personagem achar que entrar para a respeitável banda de John Legend será "vender-se" - porque ser comercial não faz parte do jazz. Porque este personagem ama tanto um estilo de música que tevem origens na pobreza afro-americana que se recusa a pagar as contas para poder ouvir os seus vinis - estão a ver a ironia?

Voltando a onde estava.

Depois da cena de abertura de uma belíssima dança por um grupo de dançarinos e actores diversificado que estabelecem um certo nível através de um só plano-sequência, não dá para mais nada que não a desilusão. O filme não volta a bater naquele nível inicialmente estabelecido, antes opta por contar uma história visualmente confusa, ainda que com boa cineatografia, sobre um casal onde o conflito central é o de qual deles tem a paixão mais forte. Desenrola-se num enredo previsível com bastantes dos conhecidos clichés e não nos dá muito mais do que números musicais que nem sequer se superam a si próprios. Não são nada demais. As músicas não são nada demais. Não são como I Like to be in America de West Side Story que, transportado para mais de cinquenta anos depois, ainda são actuais, nem sequer tem um Russel Crowe como os Miseráveis para nos deixar meio confusos acerca do que se passa, nem sequer uma Éponine a cantar sobre ir buscar o balde às escadas.

Não é nada de especial. Então como é que conseguiu 14 nomeações - superando o record de nomeações de James Cameron - para Óscar é o que me transcende. Se La La Land fosse só mais um filme de que se fala, era como o outro. Mas este filme incrivelmente mediano conseguiu convencer toda uma classe da Academia de que este, sim, é um dos melhores filmes do ano, enquanto confronta produções poderosas.

Será que é porque o jazz chamou a atenção da elite branca suburbana norte-americana? Hm.

Portanto, o que é o La La Land que não uma reinvenção musical de Crazy Stupid Love?

Fica ainda este sketch que reflecte a minha alma:

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