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Em 1912, Amadeo de Souza Cardoso estava em Paris. Passado um ou dois anos, foi para Espanha. Algures nessa travessia, encontrou os Delaunay – Robert e a sua mulher Sonia. O dois artistas acompanharam-no até Portugal e viveram consigo em Manhufe, e não só, naquele típico consílio artístico de três alminhas na espreguiçadeira de pano debaixo de sol, com a pochade ao lado, mas nada de naturalista. Foi quando o Amadeo começou a incorporar o círculo órfico de Robert – ou mais de Sonia, na verdade. Círculo órfico era o seu nome porque vinha em pandent com o movimento futurista português, com quem Amadeo publicava – Almada, Santa-Rita, Pessoa, às vezes Viana. O círculo órfico era o de orfeu, consoante o orfismo, aquele que estava nas paredes d’A Brasileira. Em 1916, Amadeo deixou de pintar. Uma doença de pele impediu-o de o fazer; em 1918, morreu de gripe espanhola, com 31 anos.

Entranto, já a guerra estalara, e com ela, os Delaunay esquivaram-se de Portugal e regressaram a Paris. Ao mesmo tempo que o faziam, os intelectuais judeus e burgueses exilados escolheram Zurique, particularmente o espacinho que o Hugo Ball alugou e decorou à base de pinturas que pediu de porta em porta e declamações poéticas de amigos. No Cabaret Voltaire, um dia, entraram Picabia, Harp e, mais importante, Tzara.

O dadaísmo durou meses; quando terminou, todos estavam chateados pela mitologia da criação, como acontece com os ismos da arte, geralmente. Tzara partiu para França. Esperava-o, aí, um dadaísmo de tal maneira niilista que ia levar o Breton a puxar os próprios cabelos e a cansar-se de tal forma que cuspiria, assim, na zanga do momento, o surrealismo. O próprio Tzara encontraria aí o Surrealismo, ao qual se dedicaria com bastante mais força. Mas aí, encontrou também os Delaunay. E a certa altura da sua vida, depois que o dadaísmo caiu no poço niilista que o definiu sempre, Tzara escreveu uma obra poética e chamou-a de “Sonia Delaunay”.

Consta que, na ausência de Robert, Sonia foi acusada de espionagem para, creio, os comunistas, a partir de uma carta enviada (ou qualquer coisa) a propósito de um submarino. Esse submarino está numa obra de Amadeo, que a defendeu e se manteve do seu lado até ao fim do caso; e enquanto isso, inseria os seus círculos órficos nos seus quadros, por vezes com pequenos (grandes) insectos em cima destes.

Amadeo pintou os círculos de Sonia; Tzara escreveu a sua obra poética.

Quando eu tinha 18 anos e peguei num livro sobre a performance, li acerca do dadaísmo pela primeira vez. A absoluta descrença em toda a moral que rodeava estes artistas performativos, a falta de compadecência para com um mundo que se matava sem vergonha, e a atitude de se borrifar para as políticas sendo, ao mesmo tempo, bastante político, deixou-me a sentir-me quase em casa. Foi a atitude de Tzara que me cativou, particularmente. Li uma frase sua pela primeira vez que, hoje, é o meu emblema de vivência (reconhecível ao leitor, certamente): “A salada burguesa na sua eterna tigela é sem gosto e eu odeio o senso comum”. A vontade de dominar um cenário caótico para o enfiar mais fundo no caos e apresentá-lo como uma mera desordem reflectiva de um mundo em que vivia – assumindo-se capitão daquele navio que afundava com orgulho – fascinou-me. Tzara, no seu monóculo, numa fotografia em que é empoleirado por Harp e Richter pelas pernas, como três crianças, ou noutra, da autoria de Man Ray, onde uma mulher nua se projecta na parede, embora ele a ignore, ou numa outra onde DADA está escrito orgulhosamente na sua testa – este Tzara tornou-se na figura que mais me inspirou.

No final do meu primeiro ano de faculdade a estudar arte, fui ao Centro de Arte Moderna da Gulbenkian pela primeira vez. No piso de cima, estendiam-se (hoje, não) as obras que definiram o panorama português desde o modernismo à contemporaneidade pós-pop. A primeira parte para onde me dirigi foi a sala do cantinho mais ao fundo, onde os Almadas mais tarde eram dispostos junto de Alvarez e Sarah Affonso.

Vi pela primeira vez um Amadeo ao vivo e tive de me sentar para o observar com atenção durante uns largos minutos. O quadro que contemplava era aquele que ainda hoje considero o meu preferido: não tem título, mas é comummente denominado de C.O.T.Y., devido ao rótulo referente à marca (creio que) de perfumes que aparece num canto. É um tipo de obra que encontramos sempre qualquer coisa nova por cada vez que a olhamos, de tão complexa. Descobri vidro, areia, umas coisas que não percebi. Mais tarde, percebi que se tratavam de gancho de cabelo e uma pulseira. Assim que o vi, achei que se tratava de um elogio à mulher – a forma como a rosa intercepta a zona das virilhas, ou como os espelhos se colocam em triangulação com o peito da mulher, como a janela se abre nas suas costas como se espreitasse um inocente voyeur. Os académicos já sabem que aquilo é sobre a mulher, certo; mas quando olhei para esta obra pela primeira vez, achava que não era apenas sobre a mulher, mas um verdadeiro elogio à mulher. Qualquer coisa acerca da composição rítmica entre as rosas que nascem de um ventre aberto em harmonia perfeita com a paleta de cores, entre o espelho que se abre como um toucador em frente a esta figura universal – sem cabeça – e contrasta com a pulseira caída abaixo – tudo isso me dizia que era um elogio a uma mulher, todas as mulheres – Lucy de Souza Cardoso?; Sonia Delaunay?. Ou talvez fosse de eu ser mulher.

Nunca me tinha interessado pelo Amadeo até esse momento. Li sobre ele e cheguei ao ponto do meu curso em que abordei o modernismo português. Assisti a uma palestra onde foram feitas interpretações incríveis sobre as suas obras. A exposição da Gulbenkian ‘Sob o Signo de Amadeo’ – vi-a algumas dez vezes. Passei a conhecer aquelas obras de cor e passeava por aquela salita pequena com uma verdadeira emoção de proximidade para com este homem que viveu 80 anos nos curtos 31.

O Amadeo viveu mais do que lhe foi permitido. Como se lhe tivessem dado 31 anos apenas porque se sabia, de ante-mão, que iria viver mais do que isso. Lembro-me da professora R. H. S. dizer o seguinte: às vezes, temos de assinalar o mês em que a obra foi pintada para termos uma noção mais nítida da evolução do Amadeo. Ele correu tudo, conheceu tudo: conheceu Picasso, Brâncusi, Modigliani, os Delaunay, Braques. Expôs junto a eles e chegou, até, ao famoso Armory Show de 1913. Expôs desde a Alemanha até Espanha. Caiu no silêncio português assim que a bota de Salazar pisou o terreno, depois do Santa-Rita se achar o melhor pintor futurista de Portugal, enquanto os seus quadros se protegiam do pó debaixo da cama da pobre Lucy de Souza Cardoso.

Nunca, em tempo algum, eu imaginaria que estas duas figuras, Amadeo e Tzara, estariam tão próximas uma da outra, apesar de distantes. Se calhar, foi uma partida cruel do destino um viver muitos mais anos e outro morrer tão novo. Quem o sabe, talvez se viessem a conhecer. Tudo o que nos sobra são os Delaunay entre si e o elogio a Sonia de ambos Tzara e Amadeo. Penso: quase, quase que estes dois homens brilhantes se teriam conhecido; quase que se cruzaram e quem sabe o que daí resultaria!

A verdade é que eram bastante diferentes: o niilismo de Tzara que levou Breton e os restantes surrealistas ao despejo do poeta não era mais do que uma afirmação política anti-guerra; Amadeo era fanático pela guerra, cria-a o futuro do mundo. Tzara aproximava-se do surrealismo; Amadeo aproximava-se do futurismo. A certo ponto, pisaram esse mesmo terreno: Tzara era surrealista, Amadeo explorou o futurismo, mas a velocidade a que vivia, a conjugar com o seu curto tempo de vida, não lhe permitiu que permanecesse aí. O seu interesse excêntrico e eclético levou-o a mudar uma vez mais, e outra, e outra.

Estou aqui, um século depois, a fazer a ponte impossível entre estas duas figuras que são das minhas maiores inspirações. Talvez a ponte seja temporal, como um triângulo que une sem, contudo, unir. Ou eu seja uma ponte teórica, psicológica, metafórica – sei lá. O que sei é que estou a perder o meu tempo num quatro, a ouvir música, a ler livros, a esperar por um dia, um dia qualquer, em que talvez eu entre num café, num bar, num restaurante, numa sala, e encontre a Sonia e o Robert Delaunay da minha geração, para que eles também partam daqui para irem ter com o Tzara da nossa geração enquanto um qualquer Amadeo se safa da morte apenas porque a medicina, graças ao Senhor, evoluiu. Não posso saber onde estão os Delaunay, os Tzara, os Amadeos, Bretons, Harps, Richters, etc, da nossa geração. Devem estar todos como eu: fechados num espaço, à espera que qualquer coisa aconteça, que a pessoa certa esteja ali à espera e que essa pessoa seja uma espécie de musa que lhe vai ligar um botão de inspiração e definir uma qualquer veia artística – ou outra coisa qualquer.

16 de Julho de 2014

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