A Sociedade e a Apatia-Comédica

15:06

Em 1964, Kitty Genovese, enquanto regressava a casa, foi atacada, esfaqueada e violada enquanto tentava rastejar para a porta do seu prédio e, por fim escada acima, enquanto gritava por ajuda, em desespero, durante mais de meia hora. Ninguém veio em se auxílio e Kitty Genovese morreu nas escadas do seu prédio. No dia seguinte, mediante entrevistas, a polícia descobriu que cerca de trinta e quatro pessoas ouviram os gritos de Kitty Genovese, muitos viram o ataque, mas nada fizeram.

A isto chamamos o bystander effect ou síndrome de Genovese. A incapacidade de intervir aquando de uma situção de emergência. Vale a pena realçar que o assassinato de Kitty Genovese decorreu meros dez anos após o boom da televisão. Em primeiro lugar, portanto, temos o efeito secundário dos media: a sobre-exposição de certos materiais televisivos pode levar-nos a uma apatia quando confrontados com a realidade.

Mas o que o síndrome de Genovese explora também é a capacidade de agirmos quer em grupo quer individualmente. As experiências dizem-nos que o indivíduo tem mais tendência para agir quando individual e não em grupo, primeiro porque necessita reconhecer o perigo - percepção que falha quando em grupo - e segundo porque precisa de classificá-lo como situação de emergência e, por fim, porque necessita tomar uma decisão afim de agir consoante a emergência.

A partir daqui, portanto, podemos deduzir duas coisas: a primeira é que o ser humano é naturalmente cobarde apenas quando inserido em grupo, e que afinal estávamos errados - afinal, individualmente, temos a capacidade para agir consoante os perigos. Mas a segunda é que isto tem em conta uma componente social que parte de um pressuposto de influência. Conquanto que em 1964 essa influência - os media - nos parecessem um perigo suficiente para o termos em conta, a verdade é que, actualmente, esse perigo é tão constante nas nossas vidas que não damos por ele. O que poderíamos esperar de uma televisão que evoluiu de programas de domingo à noite para ganhar prémios para séries televisivas sobre a morte?

A que ponto é que isto evoluiu, então? Até que ponto chegámos para que este síndrome, que esta apatia plural, tenha atingido um estado verdadeiramente crítico? Ao ponto da comédia.

Enquanto amante de comédia, defendo-a a unhas e dentes. A comédia é tanto uma forma de transmissão de verdade quanto o romance distópico ou o filme dramático. Mas o problema, a meu ver, não está tanto na comédia como no receptor. Ou talvez esteja nos dois lados.

A televisão tornou-se insensíveis. Basta vê-lo pelas séries de televisão acerca de investigações criminais. A morte torna-se um factor de riso, como na série Bones. Em qualquer uma delas, raramento vemos um familiar em desespero, a chorar ou em luto. Tudo o que vemos é uma pessoa seriamente aborrecida enfiada numa sala de interrogatório e que, provavelmente, terá qualquer culpa no cartório. Não existe qualquer esforço em transmitir emoções relativamente à situação de morte - na verdade, o guionismo é tão rápido e tão pré-definido que isso não interessa. Não há tempo, nos vinte e quatro minutos do episódio, para inserir um momento mais longo de luto, de choro, de tristeza. A morte é tratada exactamente como aquilo que é para as personagens que representam os profissionais: um ofício. Mas a questão é que nós, espectadores, não somos profissionais da morte. Pelo contrário - somos espectadores, devemos ser sensíveis a isso. E no entanto, vemos o contrário acontecer: cada vez mais, as imagens de morte estão mais gráficas e, em paralalelo, cada vez menos vemos reacções emocionais inseridas nas séries a respeito dessas mortes - por esta razão realço a beleza e mestria da série The Killing, que não só demonstra as reacções emocionais da família da vítima a ponto de gelar os ossos como demonstra também as reacções emocionais daqueles envolvidos no caso.

Neste ponto, refiro-me apenas à violência: não ajuda as notícias que vemos à noite. Cada vez mais, imagens de motins, de espancamentos, de pessoas a serem brutalizadas, de extrema violência passam em frente aos nossos olhos. O problema não é só vermo-lo na televisão - é que o vemos enquanto jantamos, em família, numa ocasião de suposto relaxamento, de suposta convivência familiar. 

A constante exposição a estes assuntos - e, acima de tudo, a esta imagens - leva-nos a adquirir uma certa apatia relativamente a estes casos. A violência, por a vermos nos filmes, nas televisões, em jornais e revistas, por lermos artigos na internet e vermos imagens grotescas brutais em sites da internet, tornou-se banal. A imagem de uma pessoa decapitada é normal, banal. Um corpo dissecado com as vísceras a saírem para fora é algo também banal. E achamos banal porque nunca nos questionamos - e se o víssemos mesmo em frente aos nossos olhos?

Para entender em que aspecto a comédia nos prejudica, há que entender a evolução desta apatia. O que vejo é que o síndrome de Genovese, como uma doença fisiológica que se adapta às condições ambientais, evoluiu e mutou. Adaptou-se às condições sociais actuais. 

É preciso notar que a constante exposição dos media não se refere apenas à violência grotesca. Refere-se a tantos outros assuntos, na sua maioria de índole moral e étia. Vivemos na era da liberade de informação, na liberdade de expressão. Na verdade, liberdade tornou-se de tal forma uma palavra de ordem que se transformou em moda. Mas os conceitos de liberdade não parecem estar bem assentes - não como os nossos antepassados, os founding fathers, procuraram defini-la. A liberdade de expressão diz-nos que somos livres de dizer o que queremos e nos apetece, desde que de forma correcta e sem partir para insultos pessoais. A liberdade tem limites - mas esse parece ser um conceito difícil de absorver.

A comédia é o melhor exemplo da quebra desses limites. A boa comédia existe e ela serve um propósito: muitas vezes, não se trata apenas de fazer rir. Trata-se de passar uma mensagem, ensinar um povo que escuta melhor as notícias más através de uma forte risada. Gato Fedorento são o exemplo disso - o que não pode ser novidade, uma vez que são os herdeiros portugueses mais directos de um legado deixado pelos Monty Python. Mas a comédia nem sempre consegue alcançar o seu propósito, e isso tem em conta a excessiva liberdade de informação - que digo excessiva não por ser recorrida em demasia, mas por não ser recolhida da forma correcta.

Hoje, é-nos impossível não saber quem Hitler, Estaline ou Lenine foram. É-nos impensavel que alguém não saiba o que foi o genocídio ou sequer pense que ele nunca tenha ocorrido. É-nos impensável que alguém não saiba o que foi o muro de Berlim e que propósito serviu em relação à cortina de ferro e a URSS. Temos esta informação disponível em qualquer lado. Livros, jornais, conversas de café - podemos falar disto livremente sem que quem quer que seja nos censure. Acima de tudo, temos na internet.

Nos anos '60, vimos florescer a RAF como resposta à segunda guerra mundial, ao genocídio, ao racismo, descriminação e tudo o que estava errado com ela. Chamavam-se a si próprios a "Geração de Auschwitz", e se bombardearam, assaltaram e mataram, foi por pânico ao retorno a esses tempos, aos tempos do totalitarismo e do consequente genocídio. O comunismo surgiu como uma solução, aos seus olhos, viável, para a libertação desse poder totalitário, para o alcance da democracia, para a liberdade que os pais - a geração anterior - viram ser retirada sem fazerem o que quer que fosse em relação a isso. De certa forma, quando Gudrun Esslin disse que a RAF era a Geração de Auschwitz, ela referia-se a uma geração nascida de um síndrome de Genovese em massa.

Actualmente, o que resulta, é uma reacção em massa, não ao género de RAF, mas apática. A apatia que sentimos perante todo e qualquer assunto provém, nada mais nada menos, do que, precisamente, o excesso de informação disponível. sabemos quem foi Estaline e o que foi a União Soviética e sentimo-nos na liberdade de criticar, porque nascemos numa era de liberdade fundamentada pelas lutas dos nossos pais. E é então que a comédia entra em conta.

A nossa actual apatia não é a mesma que a da geração anterior à dita Geração de Auschwitz. Esta é outra apatia - é uma apatia antitética, se assim o quisermos definir, porque é, em si, na sua própria definição, contraditória. É uma apatia que diz que a nossa vontade em ignorar o assunto, em fingir que ele não acontece, apenas pode acontecer se usarmos uma qualquer protecção que nos confirme isso mesmo - ou seja, para pormos de lado um assunto que nos incomoda, simplesmente porque não o levamos a sério, precisamos de criar um conceito qualquer que o disfarce. E por isso, criamos comédia - por isso, criamos piadas que envolvem os assuntos sérios.

O problema disto não recai apenas na nossa visualização do passado - e digo do passado porque é precisamente isso que este tipo de comédia provoca. A atenção comédica que damos aos assuntos sérios do passado levam a que as pessoas distorçam a realidade através da sua forma de transmitir a mensagem. Isto leva, consequentemente, a que as coisas sejam, não ditas, mas entendidas de forma diferente. Vejamos o caso de Kim Jong Il e o frenesim comédico que girou em torno da sua morte, mas o facto é que a Coreia Norte continua a existir.

Onde o problema recai, contudo, é também na nossa percepção do presente e visualização do futuro. A comédia é também assunto para ser abusado nos dias da actualidade. E isto, consequentemente, parece despoletar reacções contraditórias - como se os dois lados por de trás da criação da RAF viessem ao de cima, mas por razões diferentes. De um lado, temos a geração que teme, tal como Grudrun Esslin temeu, o ressurgir dos totalitarismos. Por outro, temos um grupo de pessoas que vive de olhos fechados à realidade e que se limita a fazer piadas acerca da situação actual.

E agora posso chegar ao meu ponto: eu apoio a comédia, eu apoio os comic strips que contam a realidade como ela é. Eu apoio isso, desde que sirva como um propósito - porque é necessário apontar um dedo e denunciar os erros. Mas a minha conclusão é que existe ainda uma parcela MUITO GRANDE de pessoas que não compreendeu que espécie de mundo é este em que vivemos. Que ainda não compreendeu que vive uma era de insensibilidade e de constante apatia, apatia essa que se transformou em pura comédia, na simples vontade de gozar com as coisas, de brincar. Isto está a tirar a consciência da realidade aos que nos rodeiam e espalha ainda mais essa apatia-comédica.

Julgo que, antes de isto ser um factor de crítica, é apenas um facto de medo. Assusta-me que o mundo em que vivo siga esta ordem de ideias e assusta-me ainda mais não poder fazer nada em relação a isto. Não estou a descredibilizar toda a forma de comédia, bem pelo contrário. A comédia deve continuar da mesma forma que nasceu - com um pressuposto e sempre capaz de alcançar o máximos de pessoas possíveis. Mas está na hora de pararmos um pouco para pensarmos até onde a estamos a levar.

A constante comédia transformou-nos nas trinta e quatro pessoas que assistiram ao assassinato de Kitty Genovese e nada fizeram. 

P.S.: Realço que este é um saco no qual me meto. Todos nós o fazemos, brincar com a realidade, mas todos nós precisamos de um momento na vida para perceber onde se estabelece limites. Da minha parte, talvez só os tenha entendido agora.

You Might Also Like

0 torradas

Etiquetas