Livros da minha vida #4

05:24


Stargirl

Género: Drama, comédia
Autor: Jerri Spinelli  

Quando tinha 13 anos, encontrei um livro numa estante de uma livraria com uma capa particular. Era toda ela castanha-avermelhada e tinha dois desenhos amarelos na frente: uma estrela sobre uma menina (a capa acima é a versão americana, a original). Esse livro chamava-se Stargirl.

Não me lembro porque comprei o livro. Não me lembro se me foi aconselhado, se foi a capa que me atraiu, se foi o texto na contra-capa. Nem me lembro de ler o texto da contra-capa. Não me lembro de nada referente ao momento em que peguei neste livro pela primeira vez. Geralmente é assim que a minha memória funciona com tudo aquilo que me é mais significativo. Sei que, quando não me recordo do momento em que me cruzei com algo pela primeira vez, esse algo torna-se especial. Sei que é esse o caso de Stargirl, e na verdade, sei-o há dez anos, e saberei por muitos mais.

A história poderá ser tão pouco apelativa a qualquer leitor consciente como qualquer historieca de adolescente. Uma menina de quinze anos que entra para uma nova Escola Secundária nos Estados Unidos, Arizona, e tenta adaptar-se. As pessoas acham-na estranha, e no fundo, parece que são elas que se tentam adaptar a esta nova rapariga. Tudo isto parece um cliché enervante de um filme de adolescentes do Disney Channel.

Mas não é.

Stargirl é o tipo de livro que me marcou de tal forma que me ensinou a ser grande parte daquilo que hoje sou. Tinha 13 anos quando o li, e de tal forma me surpreendeu que passei a apreciar a vida de outra forma. Stargirl não é sobre as questões da adolescência tão repetidamente abordadas. Stargirl não conta a história de uma rapariga igual às outras que se tenta adaptar. Stargirl não é um livro escrito para aqueles que procuram a vulgarida e o mundano.

Stargirl é tudo o contrário. É sobre todas aquelas questões em que não pensamos quando somos adolescentes, porque sempre achamos que não temos tempo. É sobre uma rapariga tão diferente de tudo aquilo a que estamos habituados que se torna maravilhosamente sedutora, deliciosa. É um livro feito para aqueles que procuram a novidade onde já não a conseguem encontrar, para aqueles que conseguem captar o pequeno brilho da vulgaridade e do mundano. Tal como Stargirl o faz.

A personagem, Stargirl Caraway, é uma rapariga que depressa choca todos à sua volta com as suas atitudes. Ela veste roupas desenquadradas temporalmente, usa um saco de pano com um enorme girassol, tem um rato de estimação chamado Cinnamon, anda sempre com uma guitarra havaiana às costas que toca durante a hora de almoço enquanto canta os parabéns a quem faz anos nesse dia. Stargirl ri quando não há piada e dança quando não existe música. Ela sente as dores e as felicidades dos outros. É vivaz, fogosa, e capaz de surpreender toda a gente. Deixa bombons nas carteiras dos colegas, decora a sua secretária diariamente com panos coloridos e jarras com margaridas, concede toda uma importância a todos à sua volta. Stargirl Caraway pensa nas coisas que nem tão pouco os adultos pensam. Presta atenção aos pormenores que nos parecem esquecidos. Relembra o mundo de que existem pequenas coisas mais importantes na vida do que banalidades.

O pano de fundo é uma sociedade fechada, monótona, em que o tom monocórdico da vida dita aos seus habitantes como as suas vidas devem ser. Mica, no Arizona, é uma pequena cidade que vive acostumada às suas pequenas atitudes, aos seus pequenos hábitos. É um mundo carregado de conformismo em que não existe espaço para ser diferente, e a individualidade perde-se na ânsia desesperada para a aceitação.
A história é contada do ponto de vista de Leo Borlock, um rapaz de dezasseis anos que dá por si maravilhado com esta nova rapariga, encantado pelas suas atitudes e lisonjeado pela súbita declaração da sua paixoneta por si. Mas Leo confronta-se com a moralidade entre a soceidade e a sua aceitação ou os sentimentos de Stargirl. Também Leo dá por si dividido entre uma comunidade inteira e uma simples rapariga com estranhos hábitos, estranhas roupas e um constante e deslumbrante sorriso no rosto.

A história é terna, mas dura. Atrevo-me a dizer que não é uma história verdadeiramente feliz - mas isso é se não a vermos do ponto de vista de Stargirl. Ela depara-se com questões de moralidade que os adolescentes tendem a esquecer nos dias de hoje, embrenhados na sua aventura que é tornar-se adulto, misturar-se com a sociedade, a aceitação e a identidade, que a cada dia que passa, se parece perder mais e mais. Stargirl relembra-nos que existe um pouco de beleza em cada um de nós, e que essa beleza só se torna cada vez maior a partir do momento em que a descobrimos. Stargirl relembra-nos que são as pequenas coisas que, por vezes, nos interessam. Stargirl relembra-nos que todos nós somos seres individuais, não simples membros de uma enorme massa, e que é precisamente assim que devemos ser. Relembra-nos a importância que é sermos nós próprios, e mais ainda, o quão importante é para os outros e para si próprio reconhecê-lo, fornecer essa importância a outrém, relembrar o mundo que ele é feito de pequenos seres individuais que, tudo o que querem na vida, é um sorriso no rosto. Stargirl vive para fornecer esse sorriso. Salta e dança quando ninguém o compreende, debaixo de chuva e de sol, porque Stargil entende que são esses pequenos momentos que nos fornecem um sorriso no rosto. Os momentos em que esquecemos as leis da sociedade, saímos do nosso pequeno círculo e mostramos ao mundo que ser individual é uma forma de encontrar a felicidade.

Li Stargirl quando tinha apenas 13 anos. Uma idade em que toda esta viagem se inicia, em que nos descobrimos a nós próprios, procuramos quem somos e procuramos a aceitação. Imitamos, experimentamos, falhamos e repetimos. Quado tinha 13 anos, frequentava um Colégio privado onde a identidade era importante, mas constantemente esquecida. Éramos todos iguais, porque assim é que devia ser. A nossa escola era como uma pequena aldeia. Não havia individualidade, porque não coincidia com aquilo a que estávamos habituados.

Lembro-me de ler Stargirl e, imediatamente, sentir que tinha razão. Quando fechei o livro, depois de ler a última página, a primeira coisa que pensei foi isso mesmo: que Stargirl tinha razão. Que era assim que eu queria ver o mundo, porque se essa visão a fazia feliz, certamente que deveria fazer o mesmo comigo. Tinha uma amiga, então. Emprestei-lhe o livro. Lê, disse-lhe, não vais acreditar. Mas ela acreditou. Na nossa inocência, juntas, acreditámos que conseguiríamos mudar o mundo da mesma forma que Stargirl tentava mudar.

Com esta idade, ainda não se me tinha firmado na cabeça a ideia de ser escritora, ou realizadora. Na realidade, não sabia o que queria ser, excepto que queria seguir qualquer profissão ou arte que me provisse de uma verdadeira paixão. Se houve coisa que Stargirl me ensinou, foi a olhar o mundo por forma a observá-lo. Hoje, quando dou por mim a observar uma paisagem enquanto bebo um café, e uma pessoa atravessa as pedras da calçada e pára para observar o céu, a minha mente divaga enquanto observo a forma como o faz, e o que tudo aquilo poderá transmitir. Se a sinto triste, sinto vontade de chorar, e se a sinto feliz, sinto vontade de rir. Vejo uma criança de cinco anos a fazer um disparate, e quero rir com ela. Quando conheço uma pessoa nova, tento detectar nela a sua essência, e receio sempre deixá-la escapar por entre os meus dedos, receio sempre perder a sua essência e aperceber-me disso tarde demais. Como Leo fez com Stargirl.

Stargirl ensinou-me isso mesmo, a fundação para uma verdadeira arte. O segredo para observar o mundo e compreendê-lo melhor. Antes de ler este livro, era uma criança fechada e carrancuda. Não queria ver nem ouvir. Mas, então, abri os olhos. Depois, escutei. Por fim, abri a mente, enquanto tocava nas coisas e sentia os seus sabores e cheiros. O mundo mudou, aos meus olhos, depois de ler este livro. Aprendi que a essência das coisas está no seu verdadeiro ser, e que o segredo para descobrir a verdadeira arte, a verdadeira beleza das coisas, o segredo para conseguir essa pequena centelha de felicidade, o sorriso alegre no rosto dos outros, a contribuição para algo especial ao mundo, esse segredo está em algo tão banal, mas que constantemente esquecemos: a empatia.

Há dois anos atrás, procurei o livro na minha casa, mas para minha desilusão, não o encontrei. Imediatamente, percorri livrarias de norte a sul do país à procura de uma cópia. Queria em português, porque o lera em português, e não na sua língua original. Encomendei de Fnacs e Bretrands. Liguei para a própria Editorial Presença. Tinham deixado de editar o livro em Portugal.

Porém, hoje, quando fui à feira do livro, voltei a perguntar se o tinham. O senhor atrás da caixa escreveu uns números num computador no exacto momento em que pensava que era inútil, que não exisitia. A perda do livro magoava-me mais do que muitas coisas na vida - era um livro tremendamente especial para mim, uma marca de quem eu sou, uma passagem importante na minha vida, uma lição verdadeira de crescimento. Era o livro da minha vida e tinha-o perdido, e quando o procurei, não exisitia em parte nenhuma. No entanto, hoje, quando o senhor ao balcão se afastou e retirou algo de um prateleira, senti, verdadeiramente, lágrimas nos meus olhos de alegria.

Dez anos depois, cerca de cinco horas de leitura mais tarde, entendo, melhor do que nunca, porque é que este é o livro da minha vida, porque é que, aqui, estão as palavras que me mudaram e me ensinaram a atribuir um pequeno brilhozinho em tudo o que se insere à minha volta - e a mim própria. Dez anos mais tarde, este livro é-me tão importante como no momento em que o fechei depois de ler. Li muitos livros na minha vida, e muitos me são importantes, mas este marcou algo inicial, uma mudança. Dez anos depois, a história de Stargirl ainda me traz lágrimas aos olhos, sorrisos no rosto, e todo um misto de sensações agridoce que se torna impossível de definir. E dez anos mais tarde, ainda sinto o desejo de ser como ela. De ser como Stargirl.

Este é o livro que guardarei e acarinharei toda a vida, e quando os meus filhos tiverem idade para isso, fá-los-ei lê-lo, esperando que também eles absorvam das suas palavras aquilo que eu absorvi. E quando tiverem filhos, quero que também eles lho ofereçam para que leiam, e os seus filhos depois deles, até que as páginas se esgotem de tantas mãos passarem por ele. Quero que todos eles compreendam o quão é importante ser-se nós próprios, mas acima de tudo, o quão importante é reconhecermos a verdadeira beleza interior que cada um de nós possui.
 

«Nunca sabíamos quando podia acontecer. Podias ser um ilustre desconhecido do nono ano chamado Eddie. Ao percorrer o corredor, reparavas num papel de rebuçado atirado para o chão. Apanhava-lo e atirava-lo para o caixote mais próximo - e, de repente, ali estava ela à tua frente, a agitar os braços, com o cabelo cor de mel e as sardas a voarem, a engolir-te todo inteiro com os olhos enormes, a gritar em altos berros uns versos que inventava no momento, algo acerca de Eddie, Eddie e a lata do lixo a fazerem equipa para acabar com a porcaria no chão. Juntava-se uma multidão, batendo palmas para dar ritmo, mais olhos a observarem-te do que em todos os outros dias da tua vida até então. Sentes-te tolo, exposto, parvo. Queres enfiar-te na lata do lixo juntamente com o papel de rebuçado. É a pior coisa que alguma vez te aconteceu. No teu cérebro, apenas um pensamento: eu vou morrer... eu vou morrer...

E então, quando finalmente ela termina e as suas sardas voltam à cana do nariz, porque é que não morreste simplesmente?

Porque eles estão a bater palmas para ti, é por isso, e onde é que já se ouviu de morrer quando nos estão a aplaudir? E estão a sorrir-te. Pessoas que nunca te tinham visto sequer estão a sorrir-te e a dar-te palmadinhas nas costas e a apertar-te a mão. De repente, parece que o mundo inteiro te está a chamar, estás a sentir-te tão bem que quase flutuas para casa depois das aulas. E, ao ires para a cama nessa noite, a última coisa que vês antes de adormecer são aqueles olhos, e a última coisa na tua cara, um sorriso.

(...) Nós abanavamos a cabeça e concordávamos que esta miúda era mesmo pateta, talvez até oficialmente louca, mas afastávamo-nos a sorrir, talvez sem o dizer, embora todos pensássemos o mesmo: era bom sermos reconhecidos.»

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