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Não sei definir se os caminhos que a vida toma são, de facto, transcritos por algo superior a nós, alguma entidade lá em cima que nos força a tomar decisões erradas, ou se todas as pedras que pisamos são chutadas por quem pertence o pé que as pisa apenas. Gostaria de um dia entender se o dia em que Deus terá colocado uma pessoa à minha frente numa mesa da esplanada dos quiosques da Catarina Portas da Avenida da Liberdade terá sido para me ensinar uma qualquer lição que ainda estou a tentar compreender, ou se a sua intenção não foi mais do que proporcionar-me uma fugacidade de alegria de tal maneira intensa que me leva a exaltar-me em momentos idos que não os encontro em vez mais alguma de volta. Ou se terei sido apenas eu. Que cheguei estranhamente cedo demais para a entrevista. Que o destaquei estranhamente sem o conhecer quando me procurava perdido. Que me sentei à mesa a beber o meu café enquanto esperava pela minha colega, estranhamente não-desejosa da sua chegada. Que quando lhe falei pela primeira vez, cada palavra me saía fluída como a água que corre de uma torneira para uma bacia que enche. Como estranhamente o entrevistado era tão fácil de se comunicar. Como estranhamente tudo se ligou num pedaço de um segundo. No momento em que se debruça sobre a mesa, captando a minha atenção, e chamando o meu nome em tom interrogativo, como quem procura uma pessoa que já tinha a certeza ser aquela, embora todos estes desígnios o deixassem atarantado, perdido.

Já pensei mil vezes nessa razão misteriosa para esse Deus desconhecido ter sentado esta figura à minha frente a um domingo de tarde, dias antes da minha partida de férias para fora. E em toda a recriação deste meu complexo percurso, não existe evidência de que este ponto de reviravolta em particular faça sentido. Marcou-me aquele momento, marcariam-me muitos mais que eu não imagina aí virem, apenas para me deixarem à deriva mais tarde, perdida na confusão dos porquês, do grande porquê de tudo isto ter acontecido. Quem foi, e o que foi, coisas que nunca obterei a resposta.

No dia em que se sentou à minha frente (ainda me lembro das cores que vestia, grená e preto) não imaginaria eu as noites que passaria em claro plena de confusão, as chamadas escapulidas e o dinheiro gasto, a ânsia durante as noites no estrangeiro, a saudade e o sofrimento. O engano e o choque. A perda. A dor. As primeiras vezes da vida dos sentimentos misturados, das confusões.

Porque é que naquela segunda-feira eu respondi positivamente à sua pergunta quando, apanhando frio numa plataforma de comboios de Barcarena, me insistiam que não o fizesse; porque é que me propus a passar uma noite na rua de braços dados e mãos entrelaçadas num ser que mal conhecia; porque é que nos aventurámos nas ruelas de Lisboa e nos becos tristes da cidade à noite e os pintámos de cores que só eu vi; porque é que falámos da iluminação da Câmara Municipal quando nos olhámos e queríamos dizer tanto mais, se agora tanto disso ficou por dizer. Porque é que aconteceram todas estas coisas que constituem todo esse fantástico que envolve a vida de duas pessoas apaixonadas se o plano divino, o objectivo dessa entidade superior, a ideia desse Deus que tanto adoramos era, desde sempre, retirar tudo no dia imediatamente a seguir - não consegui encontrar as respostas.

E posso unir as mãos e cruzar os dedos até eles ficarem vermelhos e dormentes da minha força de vontade, existem pontas soltas que não se unirão, que oscilarão ao vento do rio Tejo à medida que as palavras que foram ditas nessa noite se perdem para sempre nos ares das estrelas que mais brilham naquele hemisfério norte que lhe apontei, às tantas. Posso fechar os olhos e sussurrar as palavras sob os lençóis ou sub a Lua Cheia com toda a força até as lágrimas me escorrerem pelos olhos e pintarem a face com o que se perdeu nessa noite em que as rochas do Tejo gravaram os gestos que nunca mais ninguém irá reproduzir e que mais ninguém neste mundo os saberá. Poderei exaltar todos esses seres divinos que provocam estes estranhos desígnios nas nossas vidas, que um dia nos sentaram frente a frente para uma entrevista para um emprego não pago numa esplanada a um domingo de tarde.

Poderei fazer tudo. Não encontro resposta. Não existe resposta para um momento de felicidade fortuito, para uma química até então inexistente, para um súbito explodir de esperança, uma réstia de forças de alegria que surge no fundo negro pintado por esse passado ido, e que depressa se foi e nunca mais voltará.

Perdeu-se para sempre. A resposta, nunca surgirá.

Porquê?

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