Um mar de gente invadiu as ruas de todo o Portugal. E assim começou a luta de uma geração

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Ao todo, fomos cerca de 300 milhões só em Lisboa e no Porto. Em Espanha, dizia-se nos jornais que não se via tamanha mobilização pacífica em Portugal desde o 25 de Abril de '74. No estrangeiro, portugueses reuniram-se na praça pública ou em frente à embaixada empunhando cartazes. Até em Nova Iorque dois portugueses ergueram
cartazes na rua. Fomos ouvidos.

E é disto que é feito Portugal. De um povo cansado de sofrer na pele a crise que não lhe pertence após anos e anos de gatunagem, de roubos, de injustiças. O povo saiu à rua e marchou para gritar e ser ouvido, para se manifestar contra a situação que sofre. Marchámos em conjunto com artistas como os Homens da Luta, a Florbela Queiroz, a Raquel Freire, o Vitorino ou a Joana Amaral Dias, todos eles unindo as suas vozes às nossas para gritarem o mesmo: basta.

Quis representar o ser estudante numa situação em que não há certezas quanto ao futuro. Quis que o Governo sentisse a pele daqueles que se licenciam com uma licenciatura desvalorizada por um processo mal aplicado, daqueles que arriscar a seguir um sonho e a estudar durante três anos aquilo que sabem que não lhes dará emprego - é assim ser-se artista em Portugal. Quis, como todos os meus camaradas artistas, historiadores e apreciadores da arte, que o governo sentisse a incerteza em relação a um futuro que não nos parece promissor, a ideia de se aproximar a conclusão da licenciatura e o sufoco de não fazer ideia daquilo que vamos fazer com ela. E o desespero que nos leva a pensar que não queremos que os nossos pais paguem mais anos de estudo, mas que com esta situação, não deixa opção. Quis eu e todos os meus camaradas estudantes, muitos envergando o traje académico - entre eles, os meus venerados padrinhos de faculdade - outros na sua própria pele, erguendo cartazes, não ocultando o facto de que são, também eles, a geração enrascada.

Fomos milhares a gritar pelo nosso futuro. Muito mais do que uma revolta, isto foi uma mudança de mentalidades. O povo saiu à rua e gritou. E como disse o Jel na entrevista à SIC é na rua que as mudanças ocorrem, é na rua que se conseguem os direitos. A revolta sentiu-se no ar, mas sentiu-se também a animação, a música dos Homens da Luta e outros artistas convidados, os gritos em uníssono de manifesto.

Não tive a oportunidade, devido à minha falta de orientação, de entregar a minha folha, como era sugerido que fizessem todos os participantes deste protesto, com as minhas causas à adesão e propostas de solução. Por isso, e como me pesou na consciência essa falta de contribuição, deixou aqui o meu ponto:

«Manifesto-me representando a área artística em Portugal - sobre outras áreas que não domino, não falarei. Como artista, como futura historiadora da arte, manifesto-me por nós, pelo nosso futuro, pelas nossas dificuldades.

Existe em Portugal uma apetência especial por tudo o que é estrangeiro. Como se o exterior às nossas fronteiras justificasse qualquer qualidade inerente a este facto. Facto, esse, é que o Tuga não gosta do produto nacional - se é de lá de fora, é mais fino. Verifica-se isso no constante consumo que parece inconsciente desta crise, deste pseudo-capitalismo americano que nos domina a cabeça, que os media nos enfia na alma nos intervalos dos programas televisivos. O português quer ser estrangeiro. Mas já como o anúncio do Azeite Galo mostrava há algum tempo atrás, esta geração é mais do que uma geração enrascada e preocupada e pronto a fazer alguma coisa pelo seu futuro e o futuro da geração próxima: esta geração é, acima de tudo, portuguesa.

Há cerca de dois anos atrás (não me recordo com exactidão) Portugal contratou fotógrafos e designers estrangeiros para criarem uma nova publicidade para vender o Turismo de Portugal. Como quem vem à peixaria para fazer um guisado para o jantar. E não só isso como pagou milhões a estes artistas. A questão nunca é colocada à qualidade dos outros lá fora - mas o que é que falta aos portugueses para atingirem esse nível. Estudei numa escola profissional que tinha cursos de Design e fotografia. Já tenho conhecido fotógrafos e webdesigners freelancers que ganham a vida ao acaso dos trabalhos. Trabalhos a sério são uma miragem. Sei que, entre eles, muitos dariam um pedaço de si para contribuírem com um trabalho tão íntimo como o design de um outdoor publicitário ao nosso turismo. Mas até para vender a nossa própria imagem Portugal sentiu a necessidade de chamar aqueles que são estrangeiros - porque soa melhor.

Há alguns dias atrás, dois arquitectos portugueses foram distinguidos com prémios de grande mérito do mundo da arquitectura no estrangeiro pelo edifício da Vodafone no Porto. No entanto, na mesma cidade, encontramos um edifício único (em vários aspectos, nenhum deles em beleza) arquitectado por um «estrangeiro de renome» a quem a câmara (e uns bolsos extra) pagarão milhões para fazer aquele trabalho: a Casa da Música. Com o seu aspecto de pedra da calçada gigante lapidada, as salas claustrofóbicas em cores mortas ou berrantes e o chão riscado pelos instrumentos dos músicos que têm de os carregar - porque o dito artista de renome que arquitectou a obra de arte se recusa a cobrir o chão com uma matéria que impeça a degradação deste - ninguém diria que quem arquitectou uma peça de arte destas tenha sido alguém com mais de dez anos.

O país divide por elites uma área que não deve ter elites. Quando falamos em cinema português, ocorre-nos apenas Manoel de Oliveira. E a seguir talvez António-Pedro Vascocenlos. E se tivermos sorte, Leonel Vieira. Então e João César Monteiro? E Raquel Freire? E Marco Martins? Os financiamentos do ICAM limitam-se àquela lista anual de um punhado de nomes que são sempre os mesmos ano após ano. Os meninos formados pela Escola Superior de Teatro e Cinema saem empunhando o seu canudo orgulhosos, mas esquecem-se de referir que o que lhes deu entrada não foi a média de 13 valores do secundário, mas a nota fechada no envelope que passou debaixo da mesa. Não somos país de indústria cinematográfica, mas somos país de arte. Onde estão aqueles que querem tantas oportunidades como os outros?

Vemos todos os dias na televisão as mesmas caras. No cinema, idem. Se sai filme português sem o Nicolau Breyner, a Alexandra Lencastre e as mamas da Soraia Chaves, estamos perante um fiasco de bilheteira. Porque o povo não sabe quem é. Então e as dezenas de alunos que o Chapitô forma todos os anos? E os da ACT? E os da ESTC? E os das outras instituições de ensino espalhadas por esse Portugal fora? Se não renovam os talentos, o que acontece àqueles que procuram novas oportunidades? Pergunta-te, Portugal - onde estão esses teus talentos?

Protestei por isto, por muitas coisas, muitas mais coisas, em nome de mim, em nome dos meus camaradas, em nome de todos os jovens e graúdos que sofrem com as calúnias que nos são impostas. Já é tempo do povo parar de sofrer, parar de sentir os bolsos rotos, de se escravizar por uma mera oportunidade. Acabem-se com as regalias, com as elites. Ouve a ti próprio antes de ouvires os outros, Portugal. Olha para dentro e depois para fora. Oiçamo-nos todos uns ao outros e encontremos depois as razões para esse tão aguardado despedimento da classe política. Para acabar com a corrupção é necessário, antes de mais, uma solução.

O nosso 12 de Março foi apenas o começo. Foi uma brisa de mudança. Mais virão, mais vozes gritarão, mais povo se unirá. Agora que derrubámos o muro da vergonha que nos separava da realidade que nos custava a aceitar, não pararemos. Algo mudou, toda uma mentalidade de uma geração. E isso trará muitas e mais mudanças a Portugal.


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