A Era da Liberdade

19:53

Nunca estamos bem.
Constantemente que ouvimos os idosos dizerem, nas ruas, coisas como "Na época do Salazar é que era", ou "Se isto fosse no tempo de Salazar, não havia cá destas poucas vergonhas". O que é bastante normal. É perfeitamente compreensível que assim o seja. Uma pessoa que viveu alguns trinta anos debaixo de censuras, PIDEs, lavagens cerebrais, implantações de ideias católicas e de devoções ao Estado e à Família, certamente que encontrará algumas dificuldade em enquadrar-se neste novo mundo. Foi do dia para a noite que, subitamente, tudo era possível. Quando nem se podia ler um livro de Tolstoi, de repente, até o Mein Kampf ficou disponível nas bibliotecas. Foi de repente que tudo passou a ser possível. E por essas razões compreendo que assim o seja.
Mas, no fundo, não somos todos uns hipócritas? Não existe vivalma que não disfrute da liberdade, quando a tem. Falamos de África, com as suas Repúblicas Democráticas de Guerrilheiros e Ditadores, e como deveriam ter direito ao voto, a isto e aquilo, e aqueloutro. E, depois, temos no nosso próprio e desenvolvido país lutas de vermelhos pelos direitos do povo numa onda de neo-comunismo, em que ser freak, fumar uns charros e ir à Festa do Avante ouvir o Jerónimo de Sousa, subitamente, é fixe. Existe uma liberdade, hoje em dia, de que não existe ninguém que não disfrute dela, mas temos sempre algo a nos queixar.
Parece-me que esta liberdade poderá ter ganho duas divergências diferentes: ora o "queremos mais", ora o "isto é demais". E acho que se torna evidente em que situações, faixas etárias e zonas localizadas isto acontece: a primeira: em escolas e em casa, adolescentes, centros citadinos; a segunda: em toda a situação possível, idosos, provavelmente interiores de portugal, ou arredores de cidades. Já nem sequer acredito que isto seja generalização malvada da minha parte. Apenas um facto.
No passado dia 12 de Novembro, um grupo de idosos, a convite do INATEL, que comprara os bilhetes para todos eles, foi ao São Luiz assistir à peça de teatro "O Que Se Leva Desta Vida", uma peça sobre dois cozinheiros que mantém um restaurante em Lisboa. A meio da peça, Gonçalo Waddington e Tiago Rodrigues, os dois protagonistas, tiveram de interromper a peça, pois que com o vaiar intenso de fundo, mesmo a três metros de distância um do outro, já não se ouviam.
Consta que estes idosos se revoltaram contra a peça por esta ser «uma porcaria, é uma porcaria. Isto não presta para nada. Não sei como aproveitam estes artistas. É mandá-los ir semear batatas!». Que é como quem diz, possui linguagem capaz de ferir as susceptibilidades dos mais sensíveis. Também chamadas de asneiras.
A certa altura, extremamente revoltada com o ultraje do nível de linguagem da peça, uma senhora aponta os dedos às câmaras e manifesta: «...e é por isso, que a nossa mocidade, os nossos meninos, andam aí nas drogas, precisamente porque é aquilo que lhes ensinam é isto. Em vez de lhes ensinarem o A e o B, ensinam-lhes é os maus caminhos.» O que, atendendo aos factos, à situação e aos pros e contras da questão, em toda a rixa verbal Gíria versus Linguagem Nobre, este é, a meu ver, o argumento mais delicioso de todos. Porque Deus sabe que os jovens vão buscar a ideia de se meterem nas drogas a peças de teatro do S. Luiz.
No vídeo abaixo, é inevitável ouvir o argumento, muito honestamente, já todos o esperávamos. E falo do momento em que uma senhora coloca o seu carapuço impermeável contra a chuva e, com uma cara carrancuda, claramente decepcionada com o nível artístico, ou não, da peça, diz a verdade suprema de todas as verdades: «isto é pior c'ó Salazar».




Para isto, já temos liberdade.
Ficámos todos contentinhos quando corremos com Marcelo Caetano daqui para fora. Ficámos todos aos pulos no dia em que as Forças Armadas tomaram conta do quartel do Carmo e, pelo final do dia, alguém declara, oficialmente, que "Somos Livres". Pulámos todos por estarmos a entrar na era da liberdade, que após quase quarenta anos de punho de ferro a esmurrar-nos a cabeça cada vez que saíamos da ordem das coisas, era tão apetecida.

A única coisa que nunca vem neste pacote de Liberdade é o Senso Comum.
Constantemente, o povo tem a mania, lá porque tem "liberdade de expressão" e "liberdade de mais não sei o quê", de enfrentar as situações desta maneira. A arte é a única coisa que, desde o início do século XX até, muito provavelmente, ao final da sua existência, deixa de ter limites constantemente. Mas existe uma margem invisível que ninguém respeita, um limite de que poucos falam, chamado Senso Comum. A arte tem-no. As acções também. A liberdade, muito mais.

Constantemente somos deparados com cenas que nos são desagradáveis à vista. Os media são geralmente o que nos leva a ter essa sensação. Mas que liberdade é esta que ataca a Liberdade de Expressão com Liberdade de Expressão? Se somos livres de dizer o que queremos, isso significa que temos mesmo de nos atacar a todos com linguaretes de baixo nível, num ciclo vicioso que nunca acabará, até eventualmente acabar em confronts físicos?

Situações como esta, no São Luiz, é o que muitas vezes leva a finais infelizes. Escusado será dizer que o que salvou, nesta situação terá sido o facto de serem idosos. Se o artista é livre ao ponto de criar uma peça teatral com umas quantas asneiras, o espectador também é livre de levantar o cu da cadeira no momento em que quiser e sair da sala. Lá terá as suas razões. E em tal situação, todas elas serão válidas, desde que o indivíduo em questão aja de forma civilizada e adulta. Mas no momento que desata a berrar «Seus ordinários!» pela sala fora, toda essa razão se perde.

Já nem está em questão, nesta situação, o típico argumento do "estes velhos vivem no século passado e não abrem os olhos para o mundo em que vivem". Isso não é justificação. Cada um tem o pleno direito de ser quem é, como é, atendendo aos seus costumes e educação. No entanto, isso não justifica que todos sejamos livres de nos levantarmos de uma cadeira, em plena sala de teatro, e desatar aos insultos aos actores, afectando o seu trabalho, e apedrejar verbalmente toda a gente à sua frente.

Um perfeito exemplo, à semelhança desta situação no São Luiz, daquilo que os excessos de liberdade podem provocar e até onde a estupidez pode ir é o novo anúncio do Pingo Doce.

É claro o ódio, nojo, seja lá o que for, que os portugueses sentem em relação ao anúncio. Eu não lhe fico atrás. Um anúncio de um minuto e meio de funcionários do supermercado em questão a cantarem, sempre sorridentes em que situação for e com uma estranha afeição por coreografias que envolvam Alfaces é, para mim, tão cómico que tenho de evitar a piada só para não me fartar dela. E eu que adoro o Pingo Doce. É, para mim, o supermercado com a melhor produção de sumos próprios do país.Mas aquele anúncio dá-me a volta ao estômago, à cabeça e a outros órgãos do corpo humano capazes de me levar ao estado comatoso, tal não é o exagero de felicidade e orgulho português: das bandeira ondulante atrás do senhor de chapéu de palha, que passeia calma e alegremente numa praia, até ao estranho, estranho homem de óculos que convida os portugueses (embora, para mim, o gesto me pareça dirigido a criancinhas, por alguma estranha razão) a aderirem ao supermercado e lá fazerem compras.

É compreensível que não se goste do anúncio, cada um é livre de gostar ou não gostar do que quer que seja. Cada um é livre de manifestar a sua opinião e argumentar porque não gosta dessa determinada coisa. Igualmente, cada um é livre de ouvir os restantes argumentos. Se o realizador, produtor e criativo do anúncio me explicassem porque é que decidiram fazer um anúncio de minuto e meio de funcionários a dançar com Alfaces nos corredores do Pingo Doce como forma de promoção do supermercado, tudo o que eu teria a fazer era sentar-me, calar-me e ouvir. E quem sabe, talvez até a justificação tenha lógica. Talvez até os senhores tenham a sua razão de quê. Quem sabe não ssão emigrantes da França que aqui chegaram em '75. Quem sabe não padecem de Sinestesia, e portanto esta visão colorida do país e do supermercado em questão não será já algo tão natural quanto comer.

Agora, daí a criar-se um abaixo assinado para acabarem com este anúncio e proibir a sua circulação, de vez, na televisão e rádio públicas? Porquê? Tirar o som à televisão não chega? Desligar o aparelho não chega? Barafustar umas quantas vezes enquanto vão tomar café com os amigos também não chega? Têm mesmo de se fazer ouvir por todo o país, escrever uma porra de um requerimento todo fino, pleno de palavrinhas bonitas, como quem de facto andou na escola, e procurar argumentos válidos para terminarem, de vez, a transmissão deste anúncio?

Por definição, um anúncio televisivo visa oferecer ao público uma forma de publicitar determinado produtor, oferecendo uma série de promessas em troca de pouco. Se o anúncio do Pingo Doce, de facto, falhasse em todos esses campos e simplesmente se limitasse a ofender a integridade dos portugueses, suponho que então, um abaixo assinado seria válido. Mas um anúncio de minuto e meio de uma quase fadista a berrar as qualidades de um supermercado? Como é que algo assim poderá ofender a integridade dos portugueses? Qual serão os danos que esse tão falado anúncio poderá provocar que a simples acção de desligar a televisão não resolva?

O excesso de liberdade não tem combate possível, a meu ver, mas possui um antídoto muito simples e de fácil acesso a qualquer um, chamado Senso Comum. Basta meter a mão na consciência, inspirar, contar até cinco, expirar e dizer "Eh pá, de facto, é verdade". Mas combater a liberdade de expressão com mais liberdade de expressão só leva à estupidez. Medidas extremistas como impedir este ou aquele de fazer o que quer que seja é simplesmente ridículo. E, no fundo, é essa a solução perfeita para o caso, uma vez que estão a depositar todas as atenções que o indíviduo sempre quis. Se gostava que a Margarida Rebelo Pinto parasse de escrever? Então não havia de adorar? Mas confesso que não comprar os livros dela e desaconselhá-los aos meus amigos, para já, chega-me. Se gostava de ver a Maitê Proença com a cabeça entalada na boquinha de um leão? Então não seria tão giro? Mas se tudo o que a mulher fez foi um mero sketch de comédia, há três anos atrás, em que a inteligência da senhora nem sequer lhe permitiu construir piadas com o mínimo de integridade, porque é que me hei-de preocupar com a sua crise de menopausa?

Quanto ao senhor que terá criado o alegado abaixo-assinado contra o anúncio do Pingo Doce, suponho que não tenha recebido abraços suficientes enquanto criança. O problema, amigo, é que Portugal inteiro não é teu papá. As buscas de atenção extremas já não resultam.

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