20:25

Acordei, mais cedo do que estava à espera, e vi as luzes vermelhas do relógio despertador ao longe. Demorei a localizar-me; demorei algum tempo a recapitular as últimas vinte e quatro horas da minha vida. Movimentei-me na cama quente, sob o lençol vermelho e a manta fina, e então compreendi, relembrei, e sorri, quando o meu braço tocou no teu ombro.
Voltaste-me as costas durante a noite; de manhã, já dormias disperso pela cama, disperso pelos sonhos, disperso pelos acontecimentos passados. Fechaste os olhos às minhas últimas vinte e quatro horas e dormiste, dormiste sobre o assunto que eu viria a reviver à noite sem dormir; dormiste sobre o assunto que me viria a impedir de dormir.
Voltaste-me as costas durante a noite, e eu ergui-me da cama sem pensar. O frio exterior gelou-me a pele; esqueci-me de que ainda era início da Primavera. As luzes matinais iluminaram a sala vazia; lá fora, um camião apitava languidamente à medida que vários homens gritavam ordens distantes – de vez em quando, um som grave de um qualquer embater seco sobre o chão de cimento – sei disto com toda a certeza do mundo, porque foi este o som que me despertou do meu sono. Olhei pela janela – os estores estavam puxados para cima, as cortinas brancas, quase translúcidas, deixaram-me clara a visão – e vi que o tempo tinha piorado. Nuvens pintavam o céu. Um sentimento de desalento atingiu-me a memória – a minha primeira tristeza do dia. Naquele dia, não queria que chovesse.
Deitei-me sobre o sofá. A sala vazia, desabitada, preenchida apenas pelo meu corpo, agora liberto, perdido, solto. Deitei-me sobre o sofá e cobri-me com a manta que deixámos ali mesmo na noite anterior. O computador ainda estava ligado. O cinzeiro estava preenchido de cinzas, as beatas que eu apaguei vezes sem conta contigo ao meu lado. As garrafas de cerveja poisadas, vazias, sobre a secretária. De encontro à janela, a mesa de jantar, dois lugares – dois pratos – agora vazios. Dois pratos, alguns com restos de comida, guardanapos, talheres, loiça suja. Perdido, para trás, atrás de mim – de mim, deitada ao longo do sofá, debaixo da tua manta – esquecidos de uma noite passada.
Lentamente, fechei os olhos. O cheiro daquela casa não me permitia dormir. Sentia-o, sentia-te, por todo o ar à minha volta. Sozinha, no meu lugar sobre o sofá e sob a manta, finalmente adormeci. Eram nove da manhã.
Acordei de novo com a tua voz. Não sei que horas eram. Deixei de ter em conta as horas, o passar do tempo, conforme ouvi a tua voz no escuro do meu sono. Despertei, languidamente remexi-me sob a manta, lentamente te observei: despenteado, esfregas os olhos e sorris, é só dormir, aqui, acusas, e eu sorrio e volto a fechar os olhos. Sei que é tudo uma provocação doce: sentas-te sobre o sofá, também tu escondes sob a manta; agora, partilhamos a manta. As minhas pernas esticam-se, deita-las sobre o teu colo. O teu toque e o meu sono, as sensações que se misturam, dissolvem. Sinto-me a flutuar, leve. Quero adormecer como juntos adormecemos na noite anterior. Deixar o calor do teu quarto envolver-nos; a ti, os teus braços. Tudo, até perder noções de tempo, de vida. Deixará, então, tudo de existir.
Deitados sobre o sofá, deitados sob a manta. Vamos ver um filme, dizes. Então dizes me as horas – ou sou eu que as verifico no telemóvel? Não me recordo – são onze da manhã. Não ligo ao filme. Não vejo o ecrã do computador à minha frente. Deitada de lado sobre o sofá, encosto-me à manta, e sob esta mesmo, sinto a tua mão. Está na minha perna. Está no meu joelho. Apertas-mo como se tivesses medo de me perder. Não te posso deixar escapar. Tenho de te dizer, de te responder à noite passada, a esta noite partilhada. Debaixo da manta, alcanço a tua mão. A minha mão e a tua. Os teus dedos fortes entrelaçados nos meus. Debaixo da manta, sou eu quem te aperta a mão e toca levemente sobre a tua pele fina com as pontas dos meus dedos. Silenciosamente, digo-te: obrigada. Silenciosamente, sorrio. Não sei se o percebeste. Não disseste nada. Não te moves, excepto a tua mão escondida, que agarra a minha com igual força. Silenciosamente, ficamos assim, de mãos dadas, a ver um filme. Silenciosamente, dormimos.

Silenciosamente. Assim te aguardo. Silenciosamente, espreito de novo pela janela fechada com os estores abertos da tua sala, relembro o tempo nessa manhã: acordei, deambulei pela sala como uma vagabunda e vi o mau tempo. A primeira tristeza do dia. Adormeci no teu sofá, sob a tua manta. E de novo, acordo, desperto perante a tua voz. Olho de novo, através das cortinas quase translúcidas, para lá da mesa do jantar, agora sem significado nenhum, agora vazia e seca, através dos vidros: está sol. Silenciosamente, percorro o caminho dos meus passos desde a noite anterior até essa mesma manhã. Relembro-me no cais, olhando para os barcos, a sentir a brisa fria fluvial na minha cara, pensando nervosamente no que viria aí, relembro-me à porta do centro comercial, de cigarro na boca, procurando o teu carro, e com uma gargalhadazinha seca de criança perdida, encontro-o à minha frente, e entro, entro para o interior do teu carro, onde já está aquele cheiro teu que tão bem conheço. Relembro cada passo: que, silenciosamente, nada me resta se não a lembrança.
Gostava de entender. Silenciosamente, também o tento compreender. Esta noite não dormi, pensava. Esta noite não dormi, e sorria. Havia tantas razões para estar contente por não ter dormido naquela noite. Sorria. Sorrio, ainda, ao recordar-me. Silenciosamente. Sempre silenciosamente.
Silenciosamente, não compreendo.
Não compreendes.
Ninguém sabe.

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