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Solta-se este desejo súbito de que este autocarro nunca mais parasse enquanto eu sinto o meu assento tremer e vejo as imagens sumidas da sociedade. A minha fuga, não é, na verdade, uma fuga. Tudo irá acabar dentro de menos de meia hora, e meia hora, neste tempo, neste lugar - aqui e agora - de phones nos ouvidos, atenção nas ruas e letras tortas escritas pela mão trémula vítima do balbuciar do autocarro, dentro de tudo isto, meia hora é muito pouco.
A banalidade que atravessa estes olhos é-te diferente, sociedade. Eu tento extrair alguma beleza do teu lado mais miserável e feio, e por isso, tento puxar do meu telemóvel com câmara fotográfica integrada - sirvam as novas tecnologis para algo mais do que marcar fins monetários - na esperanºa de captar aquele sol poente atrás daquele velho edifício em ruínas. Se vissem! Se vissem como os raios de sol disparam pelas vigas verlhas e os pedaços de madeira apodrecida, ou como os tons alaranjados destes mesmos raios pintavam as paredes outrora brancas de cores indescritíveis, ou mesmo como se viam pequenos quadradinhos reflectores de uma tonalidade cor-de-rosa onde outrora haviam sido janelas. Se vissem!...
Tudo poderá acontecer subtilmente. Subtil e fugazmente. Tudo isto poderá ser o meu segredo, meu e teu, sociedade. Tudo isto poderá não passar de um sussurro de ti, sociedade, para o meu ouvido, como o vento que sopra de longe. Mas traíste-me com as novs tecnologias: click! Click faz o a máquina fotográfica em miniatura, click é o som do disparador da máquina fotográfica integrada no telemóvel. Click. E as pessoas voltam-se, as cabeças rodas, cabelos, peles, olhos, narizes, bocas, dentes, babas, tudo na minha direcção. As tecnologias acusaram-me; acusaram-me de captar um momento banal; acusaram-me de pensar que consegui embelezar o que muitos chamariam de feio, simplesmente acusaram-me. As cabeças ignorantes a voltarem-se para mim; as cabeças. Todos os olhos. E bocas e narizes e sobrancelhas contorcidas. Nada está claro. Pelo menos aquele momento, aquele sol posto atrás de um prédio em ruínas, está agora para sempre gravado. E não há nada que me possas fazer para impedir, sociedade, porque sou livre.

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