Num futuro distópico, é ilegar ser-se solteiro. O modo como isto se aplica no mundo é simples: aqueles que, por infortúnio, dão por si sem cara-metade, são enfiados num Hotel onde têm um tempo limite para encontrar alguém com quem passar o resto da sua vida, num tempo limitado. Ocasionalmente, vão caçar "solteiros" que vivem renegados na floresta com dardos que, segundo o filme, é só para adormecer, mas o que é facto é que toda a gente que é atingida por um não volta a aparecer no ecrã. Aqueles que, ao fim desse tempo, não encontrem a sua cara metade, são transformados num animal à sua escolha. A personagem de Colin Farrel escolhe ser uma lagosta, porque elas são tipo imortais até vir um gajo e enfiá-la numa panela (juro que isto é uma frase do filme). A premissa é interessante, pensava eu.
A primeira cena mostra uma mulher a conduzir. De repente, pára, sai do carro e dá um tiro num burro. É crua, porque vemos o outro burrinho a aproximar-se tristemente deste burro morto. A mulher entra então para o carro e regressa para de onde quer que seja que tenha vindo.
E nunca mais a cena é referida.
A mulher, vemos mais à frente, é chamada pelos restantes hóspedes de hotel de Mulher sem Coração (está literalmente nos créditos). É fria, cruel e sem qualquer tipo de empatia pelos outros. É a mulher que a personagem de Colin Farrel escolhe para cara metade porque tem cabelo curto e ele gosta de cabelo curto - porque sim, já percebemos, o mundo é frÃvolo e esta distopia é uma crÃtica à ansiedade em encontrar uma cara metade. Farrel decide que é mais fácil fingir sentimentos que não se tem que fingir que não se sente nada, e finge também ele ser uma bestinha que gosta de dar tiros a burros (ainda não sabemos porque é que aquilo aconteceu, atenção). Mas para provar que ele é um coninhas, decide matar o cão que traz consigo que é o seu irmão. Porque até agora, não bastava matar burros (e não, ainda não é dito porque é que ela matou o burro).
No Hotel, masturbação é proibida, mas estÃmulo sexual é incentivado. Por outras palavras: esgalhar o mastro é uma vergonha, mas ter a criada (sim, a única do hotel) a roçar as nalgas na verga, pode ser. Não é bem dito porquê, se não para, talvez, deixar os homens à beira de rebentar a bolha para depois ela se levantar e dizer "parabéns pela sua fantástica erecção" e pisgar-se. Parece-me uma abordagem um pouco supérflua da questão da sexualidade (talvez porque a masturbação seja exclusivamente um acto de sexo solitário, sinónimo de solteiro?) e o que poderia ser mais aprofundado fica-se assim por umas cenas de nalgas a menearem sobre a virilha de algum pobre coitado. Até que um fanhoso (literalmente, a personagem dele é o fanhoso) é apanhado a afiar o lápis e, como castigo, enfiam-lhe a mão numa torradeira.
Há ainda apresentações dos perigos de estar solteiro: se és homem e estás a comer sozinho, vais-te engasgar e morrer, já que toda a mulher deste universo cinematográfico traz o pré-rquisito de saber Heimlich. Se és mulher e estás sozinha, vais ser violada. Porque, então, a única coisa que a distopia feminina tem a oferecer é violação! Então como é que se aprofunda a ideia de uma sociedade obcecada na ideia de co-dependência por fim a combater o individualismo, a ponto de tornar compulsivas as relações românticas e sexuais, legislando-as inclusive? Diz-se que a gaja que anda sozinha é violada, claro.
É depois da Gaja Sem Coração matar o cão, ahm, irmão de Farrel que ele se pira e foge para a floresta. AÃ, conhece Léa Seydoux, lÃder dos Loners - hah - que são um grupo rebelde que se virou contra a sociedade e vive em solidão, celebrando precisamente o facto de todos serem não só solteiros como sem qualquer interesse no romantismo. É um daqueles momentos agridoces porque foi perdida a oportunidade de se empregar o termo ASSEXUAL com toda a força, mas não aconteceu; e ao mesmo tempo, ficamos a pensar que teria sido uma perda ir-se por esse caminho porque estes gajos, afinal, também são extremistas: quem for encontrado nos amochanços, no roça-roça ou - pior - a rebentar bilha, é castigado. É-nos dado um desses exemplos de castigo: os lábios são cortados e eles são obrigados a beijarem-se. Aqui, esgalhar o pessegueiro já é altamente incentivado. Porque a sexualidade está sempre presente, mesmo quando se pertence a um grupo que podemos assumir não ter qualquer interesse nela.
Este grupo, de quando em quando, veste roupinhas chiques e vai à Big City. Para quê, não se percebe. O que entendi é que vão ver candeeiros e que a Léa Seydoux tem saudades dos pais. Mas não há uma razão concreta para isso. Não voltam de lá com informação nova, não vão fazer nada de revolucionário, não vão sequer falar com mais ninguém que os pais da lÃder que acreditam que a filha trabalha numa Empresa Importante. Fica assim no ar a ideia de que é para "treinarem", mas para quê, não faço ideia. Se é para aprenderem a misturarem-se na sociedade, então para quê a necessidade de serem extremistas assexuais e não-românticos, se não há qualquer objectivo com isso? Talvez vão matar saudades de terem pertencido ali? Ou então era mesmo necessário este plot-point existir mas ninguém pensou bem no porquê, ding dong.
Farrel e Weisz apaixonam-se. Aliás, quem narra é Weisz a partir de um diário que, descobrimos no desenlace, a criada do Hotel (que está de paninhos quentes com a organização) descobre abandonado. Como é que ela o achou, não sei. Mais, como é que a Weisz perde a merda do diário onde literalmente conta todos os seus segredos e não dá conta disso, nem chega a perceber até ao final do filme como é que as pessoas ficaram a saber que ela andava a partir bilha com o Farrel, passa-me completamente ao lado. Teria sido, a meu ver, um plot-device interessante para explorar a hipocrisia o individualismo extremo deste grupo - o diário poderia ser roubado porque não gostavam que ela andasse sempre a escrever, porque esse individualismo se quebra na necessidade preservação sob a lupa do extremismo - mas nem sequer vemos a personagem a escrever uma palavra. Ele existe, e temos de aceitar que, um dia, caiu ao pé de um rio, e nunca mais é referido.
Léa Seydoux leva então Rachel Weisz ao médico, porque há aqui uma coisa que é genuinamente interessante. Já que esta sociedade é fria e estúpida - a maneira como as personagens falam é quase robótica, porque a necessidade de viver lado-a-lado de alguém por puron respeito à lei, a compulsão no casamento, é tal, que as personagens encontram apenas uma CaracterÃsca Comum: Ben Whishaw, por exemplo, finge que sofre de sangramentos do nariz espontâneos (dando uma puta duma cabeçada nos móveis) para ficar com uma rapariga que sofre do mesmo. O gajo fanhoso, além de ser fanhoso, é coxo, e chega-se a referir que "há aà uma gaja coxa", ao que Whishaw responde "népia, é só um entorce, amanhã está boa". Weisz, por sua vez, vê mal - e Farrel usa óculos. Este é o ponto que os une.
De maneira que quando Seydoux a leva ao médico, é para lhe curar a vista. O que de si só, é prenúncio para o fim da relação, se ao menos esta questão estivesse melhor estabelecida eu tê-la-ia sentido como choque. Mas não, ela vai cegá-la. E lá vai ela, cega.
E os dois deixam de ter então algo em comum.
Mas a relação continua, e no final, os dois fogem e vão para a cidade. O filme termina com Farrel enfiado na casa de banho com uma faca apontada aos olhos enquanto Weisz espera na sala. Nunca vemos o que faz e as opções são óbvias: A) arranca os olhos; B) finge que arranca os olhos, mas afinal ama-a à mesma, porque aprendeu a amar!, C) baza e caga nela porque não consegue fazer nem um nem outro. Ou seja, não sabemos bem se ele afinal é uma lagosta ou um lagostim.
E a única coisa que não sabemos no final é porque é que aquela gaja matou o burro.
O filme tem potencial, mas é uma salganhada de conceitos explorados sob o prisma de uma visão artÃstica qualquer que não apanhei. Metade das coisas são salpicadas assim pelo enredo fora, e é suposto apanharmos. Numa cena, vemos os Loners a "atacarem" o hotel. Três deles vão ter com o manager, atam a mulher a uma cadeira põem-lhe uma arma na mão e dizem que, se souber sobreviver sozinho, que a mate. Ele dispara, mas a arma está vazia. Ao mesmo tempo, Farrel visita Whishaw com a sua nova famÃlia (a gaja que sangra do nariz e a "filha adoptiva" que, aqui, é introduzida como mecanismo de resolução de problemas maritais - lol) e confessa que ele na verdade não sangra de coisa nenhuma, mas esmurra-se que nem animal e despeja ketchup nas roupas.
Por fim, vão embora.
Eu fiquei com a ideia de que isto aconteceu para distabilizar: asism, estes casais separam-se e tornam-se também eles Loners. Mas não é isso que acontece. Já o meu namorado, mais inspirado que eu, disse que era pura e simplesmente para revelar a hipocrisia da sociedade. Está certo, mas eu teria preferido a minha solução, talvez porque gosto de ver os estúpidos sofrerem, ou porque, a meu ver, metia mais o dedo na ferida e aprofundaria a questão de um gajo hiper-defensor de um princÃpio ver-se, subitamente, no espectro oposto da questão, forçado por fim a ser uma coisa que sempre desprezou (meio caminho andado para a tragédia).
Eu sei que este tipo de filmes é suposto "apanhar-se" algumas coisas, e que o realizador e o guionista não têm de entregar toda a informação de bandeja. Mas quando o espectador sente demasiadas falhas, o inevitável é que haja uma suspensão da descrença. Talvez eu em particular me foque demasiado em detalhes que até não teriam interessado, mas a realidade é que passei grande do filme a pensar "e então?, é só isto?" porque as coisas desenrolam-se sem grande nexo. Aliás, a primeira parte do filme, antes de Farrel fugir, podemos quase baralhar as cenas (se retirarmos a contagem decrescente dos dias que lhe restam) e a coisa muda pouco, o que me diz que há pouco consenso evolutivo na narrativa. O que pode ser bom ou mau (Lynch faz filmes sob o mesmo princÃpio, mas Lynch é Lynch, e ao menos admite que não faz ideia do que é que está a fazer porque não interessa). Mas neste filme, falha.
O princÃpio, o tema, a premissa - tudo isso promete, mas não entrega. Os conceitos navegam assim um bocado na incerteza, estão à espera deserem pescados. Não percebemos porque é que vão caçar Loners. Não percebemos porque é que os Loners vão à cidade. Não sabemos mais deste mundo que não aquilo que é mostrado: que na Big City, é frequente revistar-se as unhas e os sapatos (para saberem que não são Loners disfarçados), que pedem pelo registo de casamento como pedem pelo BI, que é crime ser-se solteiro. Mas nada mais. E como comentário social, o filme delega essa função apenas para as personagens que, me parece, carregam aqui uma demanda demasiado grande. É que na salganhada toda de conceitos abstractos que anda ali à espera de ser apanhado, as coisas, a meu ver, perdem-se.
Tenho, ainda assim, de elogiar a eficácia numa coisa: o lado satÃrico que demonstra o que é viver num casamento arruinado, a isnerção de crianças como modo de solução aos problemas maritais, ou a pressão extenuante em encontrar parceiro. A personagem que, a meu ver, merece mais mérito é a Mulher dos Biscoitos, e que é utilizada quase como ponto de compração ou como ponto de ignição nas decisões dos outros do que no seu potencial completo.
De resto, são duas horas que não vou recuperar.
E no meio disto, fiquei sem saber porque é que a gaja mata o burro no inÃcio.
P.S.: Decidi acarinhar as personagens de Farrel e Weisz com duas focas porque seria o animal que eu escolheria.
P.P.S.: É possÃvel que tenha escrito mal o nome dos actores, mas não me apeteceu ir ao google.
Thomas Edison era um bruxo e a electricidade mata gatos. Criticar as novas tecnologias é tão pão-nosso-de-cada-dia que cada vez que vejo uma nova onda de "artista demonstra a verdade sobre a nossa sociedade viciada em redes sociais" suspiro e sigo em frente. A verdade é sempre a mesma: estamos sempre a olhar para telemóveis. Leiam livros! Saiam à rua! No meu tempo brincava-se ao ar livre e as pessoas conversavam umas com as outras quando iam jantar fora. Já mais do que uma vez fui a um bar e vi a infame plaquinha do "não temos wi-fi, falem uns com os outros". Mesmo que eu até nem queria usar o meu telemóvel, a geração mais velha está me sempre a relembrar que eu sou uma merda só por ter um.
Dos cartoons do New York Times aos projectos fotográficos, dizem todos a mesma coisa. Selfies são egocêntricas e já ninguém sabe viver sem tecnologia. É normal que não saibam. Se hoje em dia, quando fico subitamente sem telemóvel e tenho coisas combinadas, alguém sempre me diz "faz à moda antiga, no meu tempo combinava-se um dia e hora e estava feito", mas suponho que seja por isso mesmo que esse tempo tenha originado uma série de filmes melodramáticos sobre mulheres deixadas penduradas em mesas de restaurante à luz das velas, talvez porque não havia telemóveis para telefonar e perguntar "mais cinco minutos e vou-me embora". Se saio de casa e me esqueço do telemóvel, alguém me diz "lê um livro, antigamente era o que fazÃamos", só que ao menos uns phones nos ouvidos impede aquela senhora que sem aviso se vira para mim e pergunta "o livro é bom?" a tentar meter conversa, e vamos lá com deus, ninguém gosta que metam conversa consigo num autocarro público, excepto nos filmes do Woody Allen. É sempre o mesmo que se diz, uma geração ressabiada por ver os mais novos carregados de coisas novas que não sabem mexer, a vê-los guardarem para sempre na internet uma fotografia de si próprios enquanto a única fotografia sua de quando tinha 20 anos desapareceu quando se casou.
Não é que não haja crÃticas a fazer, é que se diz sempre a mesma merda e já cansa.
Passarei a exemplo prático.
Chompoo Baritone, fotógrafo da Tailândia, criou um projecto que supostamente recria a verdade por de trás das fotografias do instagram. São pequenas narrativas de como as nossas postagens nas redes sociais - nomeadamente por meio da fotografia - cria ilusões de histórias que queremos passar, mas que na realidade não estão lá. Também já ouvi essa. No inÃcio dos anos 2000 era o photoshop. Uma pessoa tinha um photoblog, postava uma foto mais decentezinha e meio mundo vinha dizer que era photoshop. A certeza era tanta que me lembro de folhear revistas com amigas na escola secundária e por cada fotografia onde a gaja fosse giraça, vinha sempre uma que dizia "isso é photoshop", mesmo que fosse um paparazzi da mulher a sair do carro de xoxa ao léu. "É photoshop" era resposta para tudo. Suponho que hoje o argumento se tenha adaptado um pouco, dizem o mesmo mas para o instagram.
Pelo menos é o que este artista está precisamente a fazer. A meu ver - e estamos estritamente no campo da opinião pessoal - fá-lo tão bem como quando a minha cadela me tenta obrigar a sair da cama raspando as patas no edredão.
Passarei a relatar foto a foto:
O que a foto diz: fiz o pino num parque.
A verdade: uma amiga segurou-me os pés.
A crÃtica: no meu tempo, era nos pátios de cimento, debaixo de telheiros de zinco, que se fazia pinos. E gaja que era gaja empinava-se de saia ou calça, não era cá com roupinhas de treino, e fazia-se pinos sobre pinos até que a última da pilha já so tocava com o pézinho na xaroca da primeira. Ninguém segurava pés a ninguém.
O que a foto diz: comi salmão com legumes e arroz.
A verdade: o gato ia-me comendo o salmão com leumes e arroz.
CrÃtica: os livros não se usam para apoiar os pratos, para isso existem umas coisas redondas muito giras e baratas no IKEA.
O que a foto diz: tenho um mac.
A verdade: vivo numa pocilga.
CrÃtica: pinhas nos lençóis são um terrÃvel motivo de decoração. Arrume o quarto antes de tirar uma foto. Se calhar o quarto foi arrumado depois de tirar a foto.
O que a foto diz: eu numa paisagem urbana bonita.
A verdade: eu numa paisagem urbana que nem é assim tão bonita?
CrÃtica: há aqui qualquer coisa que me está a escapar.
O que a foto diz: eu na praia a apreciar o bom tempo
A verdade: quem foi o porco que deixou a garrafa de água na areia??
CrÃtica: a malta perde tempo a tirar fotos artÃsticas e perde o rasto dos miúdos que fogem para o mar.
O que a foto diz: tenho umas plantinhas giras.
A verdade: talvez tenha plantas a mais.
CrÃtica: depois de romper com a sua namorada, e ao fim de dois meses de crise, Manuel percebeu que a jardinagem afinal não é para si.
O que a foto diz: fui jogar ténis.
A verdade: mais gente veio jogar ténis.
CrÃtica: o nosso tipo de corpo não dita se somos atléticos ou não, ó palhaço que está aà ao lado a rir da miúda.
O que a foto diz: fui andar de bicicleta.
A verdade: ...mas toda a gente foi a pé.
CrÃtica: não entupa o trânsito com o seu pretenciosismo de quem quer salvar o planeta a andar de bicicleta.
Uma história dividida em três actos, Moonlight é delicado mas violento; é duro, mas sensÃvel. Mostra-nos um conflito entre crueldade e beleza.
Conta-nos a história de Chiron, um rapaz crescido em Miami, rodeado de violência, filho de uma mãe viciada, que encontra o amparo junto de Juan, um dealer, e a sua companheira Teresa. Os três actos recebem o nome da personagem, nas três fases da sua vida: "Little", como a alcunha que recebe dos outros rapazes durante a infância; "Chiron" no momento da adolescência, seu nome de nascença, no momento dos conflitos de identidade; e por fim "Black", a alcunha que lhe é dada por Kevin, amigo de infância.
Moonlight é uma história universal sobre a descoberta da sexualidade e as consequências do isolamento. Mas reduzir Moonlight a isto é isso mesmo - é reduzir o filme. É também um filme que é para todas as audiências, mas que toca a uma comunidade em especÃfico. É uma representação Ãntima da descoberta do eu, social e sexual, mas é um eu que insere num contexto especÃfico. Moonlight é uma história de raça e de sexualidade que não pode ser arrancada do filme; negar esse lado é negar todo o filme e a sua mestria.
A história começa com Chiron a fugir de um grupo de rapazes que o aterroriza. Encontra refúgio numa casa abandonada, para onde os rapazes atiram pedras e outros objectos que encontram. Mais tarde, um homem abre entrada atrvés de uma das janelas. Chiron não fala durante todo o serão, se não até ao dia seguinte quando afirma por fim onde vive. Juan, o homem que o acolhe, com Teresa, tentam compreender a criança sisuda e calada. Mais à frente, Kevin, melhor amigo de Chiron, pergunta-lhe porque é que deixa as outras crianças dizerem-lhe o que lhes apetece. Chiron encolhe os ombros. Kevin solta-lhe um empurrão e os dois rebolam numa amigável cena de pancadaria. A câmara foca-se nos detalhes sem nos dar o todo, e por um instante, somos levados a crer que há qualquer tónica de sensualidade a tentar ser transmitida. É antes uma antecipação. Moonlight, contra o que se possa esperar, não é uma história redutora sobre um negro que cresce num ambiente de drogas e violência; é uma história de um negro que se apaixona pelo seu melhor amigo, e a sua luta por essa identidade no meio da violência.
"In the moonlight, black boys are blue."
Moonlight é uma história contada em cÃrculo. No começo do filme, vemos o carro de Juan e o homem que nele se senta - o dealer de drogas que se aproxima do rapazinho introvertido que procura ajudar. Chiron, sensÃvel, bondoso e solitário, resiste ao mundo de violência que o rodeia, em parte com a ajuda de Juan e de Teresa. Mas esse mundo corrompe-o eventualmente; no ponto de viragem do acto segundo para o terceiro, Chiron - que sofre de bullying com o passar dos anos - revolta-se por fim. Espancado pelo melhor amigo, aquele por quem se apaixona, por força do bullying, Chiron exerce a sua vingança no perpetrador do mal. Aà começa o corrompimento do jovem que, no primeiro acto, Juan segura pela cabeça sobre as águas do oceano Altântico - "o centro do mundo" - enquanto o ensina a nadar, um gesto apenas reminiscente de um baptismo; como se renascesse pelas suas mãos. No terceiro acto, Chiron, já adulto, senta-se num carro que é em tudo a réplica do carro de Juan - até ao detalhe da pequena coroa no tablier. Chiron tomou o lugar de Juan - é agora também ele dealer, também ele comete alguns actos de bullying. Mas não são mais do que actos de sobrevivência. Chiron permanece, apesar de tudo, um jovem bondoso e sensÃvel, e o filme não evita mencioná-lo, e deixa-o claro aos nossos olhos. Não só a representação impressionante dos três actores - que não se conheceram até depois das gravações, para que cada um pudesse contribuir com a sua própria interpretação da personagem - como nas próprias cenas. Se no final do primeiro acto vimos a mãe de Chiron gritar algo imperceptÃvel e esconder-se na enorme luz vermelha do seu quarto, no segundo, vemo-la em inverso, saindo dessa luz vermelha, e ouvimos o que grita - "está calado". E por fim, no terceiro acto, assistimos à sua redenção. Se Chiron observa o oceano atlântico debaixo da luz do luar que torna "todos os rapazes negros azuis" - quando entra em casa de Kevin, depois do reencontro, é uma t-shirt azul que o amigo veste. Porque todos os rapazinhos negros são azuis debaixo da luz do luar, e o azul, neste filme, pinta cada cena com a sensibilidade que os actores mostram na representação de Chiron.
Se, no final do filme, Chiron se tornou na pessoa que sempre se esforçou por evitar - e não se não por circunstâncias que o rodeiam, por esse mundo que acabou por pesar sobre si - ele deixa ainda espaço para quem verdadeiramente é - aquele rapazinho da última cena do filme que, debaixo da luz do luar, observa o oceano atlântico, essa massa de água que é o centro do mundo. Ao contrário, Kevin permanece o mesmo, um antagonista àquele que é o personagem principal. E tal como no final do segundo acto Chiron perdeu as estribeira e deixou a raiva tomar conta de si, agora, é o sentimento de um amor que nutre com o passar dos anos que deixa discorrer sobre o amigo: "És o único homem que me tocou. Nunca mais fui tocado desde então". É uma tragédia que termina com uma espécie de redenção, e que talvez nos dite a esperança de esse rapazinho que é azul debaixo do luar, e a sua inocência e bondade, retornem por fim e dêem lugar ao homem que adoptou a pele de um outro homem.
Moonlight tem uma sensibilidade que se transmite numa cinematografia onde as cores contam as histórias de todos os rapazinhos negros que são azuis debaixo do luar. É um filme que conta uma história universal através de uma outra história que já só diz respeito a uma só comunidade. É uma história de crescimento e descoberta face às limitações do mundo corrompido que impõe uma masculinidade agressiva e violenta sobre um rapaz ternurento, que corrompe esse azul do luar com o ciclo vicioso que o cerca. Mas é uma história que, embora com violência, é ternurenta e delicada.
Foi com entusiasmo que hoje acordei para a notÃcia de que Chance the Rapper venceu o Grammy de Best New Artist e, mais impressionante ainda, Best Rap Album, derrotando dois dos gigantes do género, Drake e Kanye West. E isto é importante - e em vários aspectos revolucionário - por uma simples razão: Chance the Rapper é, de momento, o único grande nome do rap norte-americano completamente independente no que toca a grandes labels. Chance não é representado por nenhuma grande editora; há dez anos, aliás, que recusa.
Há quem discuta se ele é assim tão independente, visto o seu meio de divulgação dos seus álbuns ser o iTunes e a Apple Music, e que existe a possibilidade inclusive de haver acordos entre a Apple e o artista independente. Além disso, que é preciso ter-se em consideração que Chance, apesar de independente, receb a atenção de uma empresa avaliada em 700 biliões de dólares. O cantor tem ainda colaborado com vários artistas como Frank Ocean, R. Kelly, Childish Gambino, e muitos mais, facto que leva ainda alguns a debater se lhe valeu ainda a projecção. DebatÃvel, suponho.
Inegável é que o rapper de Chicago mudou o paradigma de como a indústria musical norte-americana controla os seus artistas. Facto é que Chance não tem ainda uma grande label em cima em produção dos seus álbuns, e usa o streaming como divulgação de um trabalho de concilia o rap com o r&b e o gospel em colaborações numerosas. Chance the Rapper está de parabéns pelo prémio em tudo meretório.